CIDADANIA DE RICOS

Uma de minhas ex-colegas de faculdade, hoje formada em História, criticou o slogan que usei em 2006 na campanha para deputado federal de um candidato da esquerda. “Lutando por um Brasil para todos” é a frase do slogan que retrata meu sentimento e o entendimento que tenho de como devem ser divididas as riquezas naturais e as que são produzidas pelo trabalho humano. Na verdade não concordo que quem trabalha deve dividir sua renda igualmente com quem não trabalha, nem que aquele que se esforça tem que dividir sua vantagem com quem não se esforça, tampouco acharia justo que quem investiu, planejou e se dedicou seja obrigado a dividir em partes iguais com aquele que pegou o negócio em andamento. Todavia, beneficiar-se do trabalho de outro e não retribuir-lhe ao menos trinta por cento do lucro líquido produzido é verdadeiramente exploração, extorsão, roubo, assalto e tudo o mais. Há casos em que um grupo de trabalhadores inaugura o primeiro dia de uma minúscula empresa ao lado de seu fundador igualmente pobre e com o trabalho árduo de todos, muitas vezes até altas horas, a empresa cresce, emprega novos funcionários, produz sempre mais recursos e trinta anos depois ela tornou-se gigante, o proprietário tornou-se milionário, mas aqueles colaboradores continuam pobres e sonhando com a aposentadoria para reforçar o salário do trabalho que eles vão continuar mesmo após aposentados. Isto é justo?

Em desacordo com minha ideologia, a colega de História explicou que na verdade o país não é para todos, mas para seus donos, cabendo aos pobres servi-los. No pensar de muitos ricos as outras pessoas, especialmente os pobres, existem exclusivamente para servi-los e eles têm pleno direito de explorá-los ao máximo. Uma das patroas de uma diarista muito esforçada do nosso círculo de amizades que tinha a graça de pagar faculdade para as filhas, reclamou que não é justo que os pobres dêem estudo superior para seus filhos, pois não haverá quem trabalhe quase de graça para os netos dos ricos no futuro. O surpreendente é que ela falou em justiça.

Parece que na visão de muitos ricos o resto do país não passa de uma grande senzala, de onde eles tiram a mão-de-obra escrava que pagam com um punhado de sal sem o menor peso na consciência por explorar os semelhantes de forma tão cruel. Parece que aos olhos dos donos do poder econômico tudo está posto para satisfazer-lhes as necessidades, as vaidades e os prazeres, sejam as pessoas, a cidade, as instituições, o país e tudo o mais. Prova é que os ricos hondurenhos usaram a máquina do governo, a ingenuidade e indiferença de parte do próprio povo para tirar do poder um presidente cuja filosofia popular ameaçava reduzir seus privilégios. Diante da conversa hipócrita que tentou justificar o golpe evocando a defesa da democracia, quando o golpe foi a garantia dos ricos hondurenhos de que eles continuarão no poder a controlar tudo e garantir seus privilégio e a liberdade de explorar os pobres, – diante dessa conversa onde disseram que o golpe impediu o presidente popular de perpetuar-se no poder, recordei da história de Cartago, uma rica cidade-estado do norte da África a beira do Mediterrâneo, quase à altura de Cicília.

De forte economia comercial e vendo-se ameaçada pela expansão do Império Romano, a nação de Cartago resistiu aos ataques romanos sob o comando de dois de seus maiores generais, os tio e sobrinho Asdrúbal e Aníbal, especialistas em estratégias de combate, que infringiram as maiores baixas que as invencíveis legiões romanas sofreram até então e até muito tempo depois. Todavia, com essas vitórias, a nação romana só foi acordada para a necessidade de produzir frota naval e aprender a navegar e combater no mar, único meio pelo qual sobrepujariam o poderio cartaginês, pois eles eram grandes navegadores e combatentes no mar.

Certo da revanche, o governo de Cartago com seus nobres proveu-se de exército maior e mais bem treinado sob organização e comando de Asdrubal e Aníbal. Entretanto, quando novamente a manutenção desse exército requereu mais dinheiro do que o governo dispunha, outra vez solicitou-se aos donos do poder econômico. Eles, porém, ficaram outra vez contrariados e, irados, viajaram secretamente para Roma, indo vender para os romanos as estratégias de defesa de Cartago em troca de perdão e cidadania, bem como permissão para morar e negociar no Império.

Assim foi fácil para os romanos tomar Cartago na terceira Guerra Púnica, dizimar toda a sua população e destruir sua cidade a ponto de não deixar pedra sobre pedra. E até espalharam sal sobre seu sítio em sinal de que essa destruição era para sempre. Quanto aos poderosos cartagineses, ficaram mais ricos por terem vendido seus irmãos e seguiram felizes para sempre sem o menor peso na consciência.

Todavia, ser desleal e preocupar-se só consigo e nada com sua pátria e compatriotas não é privilégio dos ricos. Trata-se de uma característica do ser humano, haja vista que, quase em regra, quem se torna rico faz-se inacessível, seja porque não mais tem tempo, pois vive a cumprir compromissos que redundam em ganhos, ou porque muitos se entendem então mais dignos que os outros, a quem eles têm por fracassados, pois não conseguiram o que eles conseguiram. Por outro lado, é notória a forma como os pobres vêm àqueles que eles têm por ricos – como caixa forte, vistos apenas como fonte de recurso e como quem não carece compaixão e afeição.

O que se vê, entretanto, é que, enquanto pobres, muito mais pobres têm compaixão e são solidários para com os necessitados, enquanto os ricos, na maioria das vezes, postam-se indiferentes, como se já tivessem feito sua parte trabalhando e não criando problemas e nem andando a pedir, estando assim com seu dever cumprido.

Isso tudo prova que o poder econômico entorpece o ser humano, sufocando-lhe a humanidade, a compaixão e misericórdia, tira-lhe a confiança na provisão de Deus e põe no lugar o medo dos autos e baixos da vida, o pavor de perder o conforto, a honra aparente e os privilégios adquiridos, pelo que se torna avarento até com o menor centavo na hora de pagar pelos serviços de seus serviçais, parecendo-lhes também muito dispendioso dar qualquer esmola, apegando-se assim ao dinheiro como se fosse a única garantia de sua existência.

É verdade também que muitos pobres se tornariam exploradores sem piedade se ficassem ricos, como são impiedosos enquanto são pobres. Em contra, partida, ricos há com compaixão, capazes de se aproximar dos necessitados e não só servir-lhes de fonte de recurso, mas também ser seus amigos e ajudá-los a crescer.

A verdade é que a miséria existe porque somos inseguros, então quando temos um pouco queremos ter mais para garantir o futuro. Entretanto, nosso conforto vai aumentando e nosso conceito de suficiente vai se modificando, pelo que, sem percebermos, nossa reserva de segurança vai se tornando sempre mais alta, então nossa necessidade de acumular é sempre maior. Quando somos pobres aprendemos a ganhar no dia de hoje o sustento para hoje e confiar que no dia de amanhã conseguiremos o sustento para aquele dia. Se continuássemos cuidando do dia de hoje enquanto é hoje e deixando o dia de amanhã apara quando estivermos no amanhã, quando conseguíssemos para dois dias já nos sentiríamos mais relaxados e não sentiríamos tanta necessidade de garantir o dia trezentos e sessenta e cinco à frente a qualquer custo, retendo, por exemplo, com fraude os salários dos trabalhadores e empobrecendo a eles e a humanidade em geral.

“Mas Deus lhe disse: Louco, esta noite te pedirão a tua alma; e o que tens preparado, para quem será?” – 12:20.