Reflexões sobre o crime
Poucos se lembram da catástrofe do Haiti, onde além dos desgraçados locais também morreram diversos funcionários da ONU, oficiais brasileiros e a mãe de todas as crianças necessitadas, dona Zilda Arns. Agora, o que se ocupa nas cabeças de todos aqui, na terra do carnaval e do futebol, do Big Brother e da Fazenda, é o assassinato ao vivo da cabeleireira Maria Islaine. Uma morte anunciada que as autoridades incompetentes não tiveram o trabalho de evitar. Em todos os cantos, o que se ouve é a narração funesta do momento em que o ex-marido chega no salão e, de arma em punho, dispara friamente contra a ex-mulher.
Começaram com seis tiros no primeiro canal de televisão, que mostrou com exclusividade. Hoje, depois de várias reprises, os tiros aumentaram e já são nove. Das versões que circulam pelas esquinas, a de que o Fábio era gay é talvez a mais engraçada. Segundo os donos dessa narrativa burlesca, Islaine estaria disposta a abrir o jogo para a imprensa se não tivesse um apartamento passado em seu nome. Outra dá conta de que o moço lera o livro de São Cipriano e entregou a alma da mulher ao tinhoso Pé redondo. Ela, com medo das ameaças, separou-se dele e instalou as câmeras para captar qualquer investida que pudesse tentar. Acabou assim por filmar seus últimos momentos que, segundo um baitola das páginas sociais sem perder o glamour nem a coragem, linda e loura, cheirando a jasmim.
O fato é que mais uma vida se acaba de forma inexplicável. O que dizer diante das cenas sensacionalistas dessa execução premeditada? Lamentar que a intolerância do mundo chega a níveis alarmantes, onde a sensibilidade é esquecida e o respeito pelo outro já não existe mais? A existência foi banalizada, enquanto o amor é subjugado por questões periféricas. Em gravações, vimos a cabeleireira desesperada, pedindo socorro, fazendo as devidas denúncias, como se pede à justiça, mas a própria justiça aleijada não se deu conta de que havia ali uma questão de gravidade maior.
O acúmulo de boletins de ocorrência hoje dá um soco no estômago da lei e manda calar a boca para não dizer nem aí, o descrédito aumenta em toda a sociedade, deixando a tal violência ainda mais voraz, pois o cidadão ameaçado não vai querer esperar a morte pacificamente, como o ícone pacifista indiano Mohamad Ghandi, apenas jejuando e orando. Ou, no caso em questão, com as mãos nas cadeiras desafiando as balas do revólver.
E os jornais não se cansam de mostrar a mulher caindo e mais tiros a queima-roupa explodindo no seu corpo. As crianças, encantadas com o novo herói, saem correndo com revólveres de plástico presenteados por pais imbecis, e recriando os sons da tragédia usando da onomatopéia para atirar nas suas vítimas lúdicas.
E que seja este realmente um crime doloso, que os 12 a 30 anos possam realmente ser a moradia prisional desse sujeito que demonstrou não ter a menor condição de viver em grupo, também para que sirva de exemplo para outros marginais que sustentam a mesma vontade. Até o dia em que aparecer do nada uma filosofia de vida que possa mudar a concepção do olhar sobre o outro, nem que para isto precisemos voltar aos primórdios, riscar as paredes das cavernas com os traços místicos e recomeçar tudo de novo.