Tô desolê...

Ah, que pena!... Os vizinhos barulhentos foram embooooraaa...

O prédio agora vai ficar tão triiiiste!...

Nunca mais acordaremos no meio da madrugada com a alegre conversa gritada, o ipod esgoelando alguma música híbrida de funk, pagode e axé, a bateção de utensílios de cozinha, o espocar dos anéis quando se abre uma latinha atrás da outra...

E os cheiros, ah, os cheiros que vinham nos livrar do desagradável ar puro e fresco da hora avançada, cheiros estes que eram algo assim como o odor inigualável de bicho podre cozido, papel queimado, cerveja choca e roupa suja. Tão estimulantes!

Sentiremos muito a falta de quando cruzávamos com eles pelos corredores e escadas e eles, muito simpáticos e sociáveis, passavam reto como se não existíssemos. Era superdivertido isso de fazer a gente se sentir como um fantasma invisível ou um pilar ambulante. Talvez não compreendessem muito bem a nossa língua e não soubessem que quando a gente olha pra alguém, sorri, inclina ligeiramente a cabeça e diz "bom dia!", isso é um gesto de boa vontade e civilidade, um cumprimento que, mesmo desconhecido, pode ser compreendido como tal por quase todos os povos do planeta, menos eles, provavelmente. Embora estivessem aqui no Brasil supostamente pra estudar na UnB e, nesse caso, teriam que forçosamente saber nem que fosse um bocadinho da nossa língua. E dos nossos cumprimentos. Mas ninguém pode exigir tanto deles, não é?

Ou talvez, então, fossem meio surdos, porque aquela moçada animada só conversava aos berros, estivesse onde estivesse e fosse a hora que fosse. É fato que a língua que eles falam é meio complicada e talvez por isso tenham que gritar tanto pra se fazerem compreender. Quem sabe se a gente gritasse "BOM DIIIIAAA!!!" bem alto eles entendessem?

No entanto, eles se cumprimentavam entre si com tanto entusiasmo e decibéis, que dava gosto de ver! Mesmo quando esse contentamento todo nos acordava um tanto sobressaltados no melhor e mais profundo do nosso sono egoísta. É tão bacana testemunhar a alegria e a camaradagem dessas pessoas tão simpáticas! Ainda que muitas vezes, por ignorarmos aspectos de sua cultura, tivéssemos confundido o entusiasmo deles com briga e discussão acalorada.

Será que em algum lugar do mundo se dá gargalhada logo depois de um entrevero bem berrado?

Agora é tarde pra tentar conhecê-los melhor, eles já foram embora.

E pra que a gente ficasse aqui com uma lembrança de tão agradáveis ex-vizinhos, eles, num gesto de extrema simpatia e consideração, deixaram-nos toda uma progressista população de baratas de estimação para que nos lembrássemos deles com carinho e saudade.

E essas lindas baratas, agora sem o alento do alimento que encontravam abundante no lar-doce-lar da moçada alegre, começaram a se esgueirar entre as frestas das outras portas e nos surpreender em sucessivas, furtivas e esperançosas visitas.

Lamento a nossa ingratidão, a nossa falta de receptividade e sentimento, o nosso arraigado e preconceituoso condicionamento cultural que nos leva a espalhar pela casa todos os recursos possíveis para eliminar essas inocentes visitantes, que tanto nos fazem recordar de nossos queridíssimos ex-vizinhos. É que nós somos assim mesmo, insensíveis e intolerantes...

Mas tristes mesmo vão ficar os proprietários das unidades recentemente vagas -- até as baratas estão abandonando o antigo lar --, porque deveria ser pra eles como uma espécie de esporte muito emocionante e divertido correr todos os meses atrás dos locatários exemplares, numa tentativa vã de receber o pagamento do aluguel e do condomínio, sem mencionar o IPTU.

Locadores estes que certamente ficarão tão ociosos agora que criarão barriga.

Não sei se teremos sorte semelhante com os próximos vizinhos.

Talvez sejam dessas pessoas entediantes e desagradáveis, muito discretas, educadas e asseadas, que cumprimentam as pessoas e pagam todas as suas contas em dia. E que costumam dormir bem quietinhas a madrugada inteira. Um tédio, não?

Só nos resta torcer e esperar com ansiedade pelo que vem por aí...

Maria Iaci
Enviado por Maria Iaci em 24/01/2010
Reeditado em 28/01/2010
Código do texto: T2048235
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