Um Pouco da Barbie e Um Pouco da Bárbara
Lar, doce lar. O relógio me diz que são 20:06.
Enquanto me embebedo, tento colocar os fatos em ordem cronológica.
Metrô Belém, 17:25 horas.
Dali a 5 minutos ela chegaria. Ou não. Tinha o privilégio de me deixar arrancando os cabelos na dúvida. Me debrucei no parapeito pra admirar o teto do metrô que vem do centro apinhado de gente. Lá embaixo, no cantinho, afastada dos trilhos, jazia de pernas e braços abertos uma Barbie. Senti pena dela: nem tirar a própria vida de plástico conseguia. Pelo menos ela conseguiu frustrar alguma criança mal-educada. Ou conseguiu arrancar lágrimas de uma criança descuidada. Tantas possibilidades pra uma boneca de sainha com a blusinha rasgada deixando as omoplatas a serem açoitadas pelo vento do apressado metrô...
Nessa incursão pelo suicídio da Barbie, matei 5 minutos. A impaciência já ficava tangível, dado o bate-bate que meus pés faziam no chão de bolinhas emborrachadas.
Dali 35 minutos começaria a sessão de cinema, cinema este que fica na Consolação.
Mais 10 minutos se passaram e nada.
Barbie estava ali porque Ken a deixara esperando, e não aguentando os infernos mentais que a ansiedade proporciona, se jogou?
Decidi mandar todo mundo se foder e ir na porra do cinema sozinho. Todo mundo fala que é prazeroso, tal passatempo.
Passei a catraca sentindo um quase beliscão vendo o visor salientando o desconto dos meus últimos R$2,55 de crédito. Tudo é custo, tudo é dinheiro, que inferno!
Sentia o que era de início um leve desapontamento tomando formas estratosféricas e grotescas. Esperei mais três metrôs esperançoso de que minha companhia cinéfila daria as caras.
Sem sucesso.
Foda-se, vou sozinho.
Desci as rolantes correndo. Assim que botei a bunda pra dentro do vagão, a porta fechou. Consultando na base da pescoçada o relógio de uma senhora que estava sentada, percebi que faltavam apenas 10 minutos pro filme começar.
10 minutos para percorrer 10 estações. Em horário de pico. Tá bom...
No Bresser, mandei todo mundo pro inferno e desci, já entrando no trem que ia no sentido contrário. Meu final de tarde já estava sem sentido. Não sabia pra onde ir e o que fazer. Achei interessante repor o meu sono sempre atrasado. Achei desinteressante dormir pra acordar no outro dia na hora de ir trabalhar. Nem fodendo!
Desci na Vila Matilde, sem ter um por quê e sem saber o que fazer. Deixei a coisa fluir: sentei nas cadeiras defronte ao primeiro-vagão-sentido-centro-último-vagão-sentido-bairro, abri a mochila e retirei As Notas de Um Velho Safado pra ver se o velho Bukowski me dava alguma luz. Abri o livro, paquerei um Lakai que entrava no metrô, esperei as portas se fecharem, o trem se retirar, e contemplei aquele prédio azul, uns mil metros adiante. Que depressão!
Mas eu estava curtindo: tocava Tim Maia enquanto Bukowski citava Balzac e Shakespeare e eu ganhava carinhos do vento morno. Que delícia!
Delícia também foi a guriazinha que apareceu, sentou ao meu lado, pescoçou meu livro, levantou e ficou esperando sua barca. Mas que belo par de pernas!
Como a música do Tim Maia tem a gravação um pouco baixa, quando começou a tocar Children of Bodom eu senti o meu dia sendo estragado juntamente com os meus tímpanos, o que me encorajou a levantar dali e ir pra casa não fazer nada e esperar alguém gritar meu nome no portão pra me irritar.
Certo, levantei e na escada rolante pude ver um vestido rosa cobrindo uma pele branca e atraente. Provavelmente cheirosa. Naturalmente gostosa.
Chacoalho a cabeça e sinto uma pontada no estômago. Parece que é o diabo que incita essas coisas, eu hein!
Carreguei (com muita dó) o bilhete, e fui pra fila da lotação. Na fila, entre mim e vestidinho rosa estava uma massa disforme que fazia questão de ostentar em alto e péssimo som seu mau gosto musical. Ainda bem que na Suécia nasceu um cidadão chamado Dennys Lyxzén!
Conspiração do destino ou não, a último banco vago da lotação foi o meu. Do lado dela.
Arriei as ancas magras que a mim foram concedidas, abri o livro e amaldiçoei meu MP4 que passou minha música preferida do Down By Law. Engatada a primeira marcha, entramos em movimento. Chacoalha pra lá e pra cá. Vestidinho rosa comia um Fandangos, Cheetos, sei lá. Eu escutava Mr. Writer. E tentava esquecer que poderia estar numa sala de cinema vendo um filme legal ao lado de uma pessoa legal. E lia. Me deprimi com a leitura quando foi revelado que o reto que Bukowski penetrou era de um homem. Fechei o livro e olhei prum poodle idiota com um lacinho vermelho idiota que estava numa varanda idiota e que olhava idiotamente pro idiota que vos escreve. Queria estar no lugar dele, sabia? Como será que é o dia de um cachorro? Vejamos o que eu faria: acordaria e levantaria a patinha traseira pra molhar com mijo a quina de alguma parede especial da casa, pra chamar a atenção da dona. Ela, viria puta, mas eu daria um olhar tão, mas TÃO MEIGO e balançaria o rabinho, que logo ela me prepararia um belíssimo café-da-manhã: Bonzo sabor carne. Nham. Depois eu tiraria uma soneca perto do portão. Algum filho da puta me acordaria e eu reclamaria: AU AU AU. Em seguida, latiria pro carteiro. Depois, mais uma boa pratada de bonzo misturado com os ossos de galinha que sobrariam do almoço. Daí eu daria uma cagadinha, olhando pra criança atentada que acha que fazendo figas com os dedos minha bostinha não vai sair. Em protesto, eu cheiraria minha própria merda, sentaria no tapete preferido da tal criança, levantaria as patas traseiras e puxaria o meu corpinho pela força das patas dianteiras. Ah, depois disso, subiria as escadas e ficaria olhando, da varanda, o tapado que ficou esperando o dia todo por uma coisa que não aconteceu.
Eu não era o cachorro. O cachorro não era idiota. Eu era o tapado. O brilho em seus olhinhos caninos somente refletia o que eu estava me sentindo por dentro e não conseguia ver no espelho do vidro logo à minha frente.
Eu senti algo queimando meu braço esquerdo. Uma lagarta?
Não, era o braço direito de uma devoradora de gorduras polisaturadas. Que braço fervente! Branquinho, descia harmoniosamente dando em antebraços com pêlos descoloridos e mais adiante, em unhas rosas bem pintadas que repousavam em belos joelhos. Pediria o telefone de sua manicure, se fosse dado à tais atividades dignas de um levantamento de sombrancelha da raça masculina heterossexual.
Faço alguma coisa?
Abri a mochila e peguei um caderno velho onde faço anotações aleatórias e que quando, mais tarde, leio, não fazem sentido. Restava uma última folha, maculada em duas linhas com um pensamento masculino idiota. Arranquei minhas palavras com um pouco de pesar, dobrei o retângulo que elas fizeram e botei no bolso. Restavam ainda trinta linhas. Será?
Peguei a caneta e escrevi "Oi". Cutuquei-a no braço, olhei-a e ofereci o caderno. Apontei com a caneta o que acabara de escrever. Ela riu. Escreveu "Ooooi, tudo bem? rs". A quantidade de O's significava alguma coisa? "Tudo bem, e com você? Qual é o seu nome?". Que merda eu estava fazendo. Mas achei criativo. "Bem, to cansada...". Aham, cansada. Fodeu. O que eu falaria?
"- É, essa vida de pegar ônibus todos os dias cansa mesmo!" - Restavam ainda 25 linhas. Eu tinha pelo menos 12 delas pra tentar falar alguma coisa menos digna de pena como a última que havia escrito.
" - É verdade."
" - Qual é o teu nome? Quatro linhas acima eu perguntei e você não respondeu."
" - Rs, desculpa, é Barbara, e o seu? Você tem cara de quem tem nome de anjo..."
" - Tenho sim. Por que eu tenho cara de quem tem nome de anjo?"
" - Não sei, talvez o seu cabelo cause essa impressão. Mas tem cara de quem não é anjo!"
" - É, tenho nome de anjo, eu acho... Tenho cara do quê?
" - Não sei. Um anjo não leria Bukowski. Eu acho."
" - É, quem sabe!? Acho que um anjo teria mais interesse em lê-lo do que ler um Nabokov da vida, por exemplo."
" - Hahaha aquele Lolita ninguém merece! Qual é o seu nome mesmo, mocinho?"
" - Haha, ninguém mesmo, horrível! Rafael, prazer. rs."
" - O prazer é meu. Quer salgadinho? Rs."
" - Não, to de regime, muito obrigado. Quer 7 Belo?"
" - Regime!? Rs. Ai, eu quero, me dá."
" - Onde você mora, Bárbara?"
" - Alí."
"Alí". Um corte desses à esta altura do campeonato não era nada promissor. Um cidadão que de início me deu uma bolsada e encostou seu orgão genital em meu ombro se esforçava pra ler o que escrevíamos. Discretamente, dei-lhe uma cotovelada, revelando que meu ombro apesar de se deslocar com freqüencia, não era apreciador de tais carinhos e que eu não era um apreciador dos intrometidos de plantão.
Contei as linhas. Faltavam onze. E eu estava relativamente perto do meu desembarque. Tudo bem que poderia ficar bem acomodado ali e ir até o ponto final, que não era muito longe de meu casebre, mas não tava afim, precisava de uma dose de Vodka ou de um comprimido de Calmapax. Ou de ambos. O quanto antes. Precisava esquecer tudo o que havia planejado nas últimas 20 horas...O cobrador apertava o gatilho daquela arminha de ar comprimido e ria, deitado sobre o tanque da van. Que trabalho difícil!
" - Bárbara... O nome da Barbie é Bárbara?"
" - Por que? Tá insinuando que eu sou Patty? rs?"
Oito linhas.
" - Não, nada a ver. É que eu vi uma Barbie suicida hoje, no metrô."
" - Que horror! Como assim?"
" - Deixa pra lá. Falta pouco preu descer..."
Cinco linhas.
" - Ah me conta da Barbieeeeeeeee suicida moçoooo."
" - Conto sim."
Três linhas.
" - Então me conta moçoooo."
Duas linhas.
" - Conto sim. Resta apenas uma linha nesta folha! Coloca seu MSN nela, que eu te conto. Preciso descer..."
Uma Linha.
- Moço, moço, não vai descer não?
- Hã!?
- Corre, senão o senhor vai lá pra garagem, hahaha.
Arregalo os olhos tentando compreender a situação. Caralho, estava no Metrô Itaquera, rumo à garagem, sendo acordado por uma boa alma que teve pena de um pobre trabalhador desconhecedor de salão de cabeleireiros.
Quanto tempo eu dormi? Ainda conseguia ouvir os ecos da vestido rosa em minha mente falando "moço, moço". Peraí, mas vestido rosa não falou. Só escreveu. Mas que porra! Parecia tão real! Que peça sem graça do destino. O estágio R.E.M do sono tinha que acontecer justamente quando ela ia me dar (ou não) seu MSN? E justo quando o metrô chega à sua última estação, porra? Se ainda restasse uma estação à frente, ou essa velha intrometida não tivesse me acordado, o desfecho seria outro.
Nada complacente, agradeço a Senhorinha que me acordou e vou, novamente, pro outro lado da plataforma, pra voltar até o Arthur Alvim e pegar aquele ônibus gostoso lotado. Um verdadeiro martírio. Não as cotoveladas, as passadas de bolsas e mochilas, as pisadas nos pés, o fedor, a má educação e o mau humor, mas a tortura mental que o carteiro trazia de quinze em quinze minutos.
Carteiro? Parecia ser obra de um. Eu explico: eu tentava esquecer a minha decepção cinéfila, e conseguia. Mas meu subconsciente, muito melhor do que o Sedex 10, me trazia de quinze em quinze minutos o que eu achava que havia descartado, colocado "Falecido" no envelope e mandado pro inferno.
Na real, eu guardava o que queria esquecer num envelope sem cola.
Por falar em cola, entrei na padaria pra comprar uma da Coca pra misturar com os resquícios de uma Vodka que sobrou do ano novo. Ao sair, do outro lado da avenida, dentro da lotação que vinha do Metrô Vila Matilde, vejo uma mocinha me olhando, com expressão curiosa. Quando o farol da rua que corta a avenida fica amarelo, ela se levanta, pra descer no próximo ponto, creio eu. Ela segurava um saquinho de Cheetos. E usava um vestido rosa. Quando o farol verde aparece, ela se vai, dentro daquelas toneladas de ferro e aço e vidro e plástico e sei-lá-mais-o-quê. Ainda consegui ver o cobrador com a pistolinha de ar...
No mesmo momento, começo a tomar uma das maiores chuvas de verão da minha vida. Era a última gozação que o pessoal que cuida das torneirinhas do céu poderia me dar pra fechar o meu dia com chave de ouro. E como bom funcionário dos Correios, o meu carteiro particular, debaixo de chuva, veio me entregar novamente a mesma carta das minhas últimas 4 horas...