As latas de meu pai

Meu pai tinha o hábito de guardar latas. De todos os tipos. Depois de vazias e bem limpas, com o cuidado de secar bem para não enferrujar, serviam para guardar de tudo. Com certeza, não era o único que fazia isso – numa época bem anterior à chegada dos plásticos de R$ 1,99, as pessoas reaproveitava as latas para guardar anzóis de pesca, linhas, parafusos, porcas, arruelas, agulhas, botões... Ainda tenho uma latinha de fermento e uma de chá mate, que guardei de recordação. Deviam ser do meu avô, porque ainda está escrito “matte”. Fortes e duradouras, aquelas latas eram a embalagem ideal para (quase) todo tipo de alimento. Não só essas coisas que já vêm em lata nos dias de hoje – atum, sardinha, milho, ervilha, pêssego em calda, leite em pó – mas um monte de outras coisas: manteiga, chá mate, chá preto, achocolatado, que hoje vêm em potes plásticos ou de papelão.

Porém, essa mesma qualidade – a capacidade de permanecer íntegra por anos, para preservar o alimento – era responsável por um sério problema. Na sua visão prática de ferramenteiro, as latas também eram o recipiente ideal para o nosso lixo doméstico. Aos sábados, tínhamos o hábito de fazer pizza. Não havia tantas pizzarias, muito menos disque-pizza. A mais próxima ficava a 10 km de distância, no bairro do Ipiranga. Além disso, era caro para um pai de família com três filhos. Por isso, fazíamos em casa –minha mãe preparava a massa e o molho, e nós ajudávamos a preparar o recheio. Coisas simples: uma de mussarela, outra de atum, ou calabresa. De vez em quando, um pouco de requeijão, milho, presunto, só pra variar. O tamanho da lata de atum era perfeito pra receber as cascas de cebola! Colocada a pizza no forno, meu pai levava o lixo para fora. Mais tarde, com as massas prontas, mais uma embalagem se juntou à família: e a lata cheia de cascas era colocada ali dentro mesmo, junto com o papelão que sustentava a massa.

Um dia, não lembro quando, ouvi falar da reciclagem, separação do lixo, etc. Não sei se foi na escola, ou na televisão. Naquela época, reciclagem era mais uma curiosidade, uma forma de mostrar a criatividade. Pra quê reciclar, se havia imensos aterros onde o lixo ficava exposto a céu aberto, sob ação da chuva e dos urubus? O tempo se encarregava de fazer a “di-gestão de resíduos”. O mais conhecido era o Lixão do Alvarenga, às margens da Represa Billings (!). Mas também tinha um enorme na divisa de Mauá com São Paulo e Ribeirão Pires, próximo à Estrada do Sapopemba. Passávamos por lá quando íamos visitar os parentes em Mauá. E também tinha outro perto do “Montanhão”, como ainda hoje é chamado o Pico do Bonilha, o ponto mais alto do ABC. Curiosamente, esses lixões eram instalados justamente nas áreas que mais precisam de proteção: os mananciais. Provavelmente, porque num passado remoto, aquilo era “terra de ninguém”, até que começaram a jogar lixo e ninguém mais parou.

O que meu pai não sabia, é que as cascas de cebola – presas na lata, e depois também pelo plástico – demorariam ainda mais pra se decompor. E por quê? Porque estavam bem protegidas. Se estivessem junto com outras cascas, de fruta, de ovo, etc., rapidinho elas virariam almoço de minhoca, e... pronto! Mas, como disse antes, não era uma preocupação comum. Isso porque não mencionei a nossa sobremesa de sábado à noite. A preferida era pêssego em calda, com creme de leite. Ou seja, era só colocar uma dentro da outra e jogar fora. A lata era uma forma de manter limpa a lixeira, e de afastar o mau cheiro e os insetos. Depois disso tudo, veio a sacola plástica... Mas isso fica pra outro dia. Quando começou a reciclagem em nosso bairro, passei a separar as embalagens vazias - eu lavava com sabão, e colocava bem longe do lixo orgânico. Mas era difícil convencer os mais velhos a fazerem o mesmo.

Não culpo meu pai, nem tenho raiva dele – nem de ninguém que fez isso por simples falta de educação ambiental. Esses, já se foram – cabe a nós que estamos aqui, fazer alguma coisa pelo futuro. Felizmente, o mundo mudou. Nos parques, nas empresas, condomínios, tem lixeiras específicas pra tudo. E se não tiver, é bom ir providenciando. Hoje, pessoas já são censuradas por não separar o lixo. E lavar lata de atum e sardinha é coisa normal. (Espere aí! Será que a marca que eu compro respeita o período de desova dos peixes??) Quantas latas jogamos no lixo, e dali foram pro aterro – calculando 4 pizzas de atum por mês, mais umas duas de pêssego e duas de creme de leite, por 10 anos... 960 latas! Devem estar ainda hoje por aí. Se você encontrar uma dessas, pode me processar!

Rodolfo Schleier

21/01/2010