26 A FATALIDADE ULTRAPASSA OS ÍDOLOS
Antes de Cristo, e de maneira violenta, morreu Sócrates. De modo igual, indiscriminadamente, morrem outros filósofos, cientistas, artistas, atletas, anacoretas, pessoas do povo. Cumpre-se a lei natural: nascer, crescer, reproduzir-se (às vezes, não), morrer. Mas quem se conforma com isto?
Ainda na Grécia, com justiça, estoicamente devem ter chorado Platão e Aristóteles, porém, ao que nos consta, por morte natural. E por Homero, também, choraram os gregos, como, de resto, por tantas celebridades deve haver prateado o excelso povo helênico.
Cidadão do céu e da Terra, o maior, consoante o ponto de vista cristão, o próprio Cristo não fugiu à norma da Natureza, mas de maneira provocada, violenta: morreu, foi crucificado. E que bobeira haverem seus algozes levado o Homem à cruz!
Não menos cidadãos do mundo, ao perecerem, causaram grandes emoções coletivas: Karl Marx, Engels, Trotsky, Guevara, Einstein e Albert Sabin. Eram líderes, ídolos no plano político, ideológico, filosófico ou meramente intelectual. Hoje, segundo a lei da superação natural, habitam as planuras do vácuo. Por isso, sendo gênios e admirados, sobrevivem, lá, no vácuo da mansão perene, e a gente, da banda de cá, deles se lembrando o tempo todo.
Roma perdeu Cícero e Dante Alighieri. Mas perdeu também um santo camarada, São Francisco de Assis, que, no Andar de Cima, faz convívio com outros veneráveis do Vaticano, da Igreja Católica e, ecleticamente, com outros próceres de várias seitas, credos e religiões variadas, por exemplo, o Sidarta.
Camões, viajando para o Além, amputou Portugal de pés e mãos. Soube-se disto somente muito tarde. Depois, quando infaustamente se suicidou, Camilo pôs um vazio nos lusitanos corações. A França ressentiu-se das partidas de Rousseau, Voltaire, Chateaubriand, Bonaparte e Jean Paul Sartre. E Joana D’Arc, qual estupenda falta fez aos místicos franceses!
O siso britânico e todo o globo terrestre consternaram-se com as viagens inusitadas de Charles Chaplin (ir-se tão moço, ainda oitentão!) e do ‘beatle’ John Lennon. Shakespeare, John Milton, todos embarcaram no mesmo bonde fúnebre. E, na Espanha, Miguel de Cervantes, Federico García Lorca e La Pasionaria.
Perón e a sua amada Evita, e Carlos Gardel, com seus passamentos inconsoláveis, deitaram na Argentina um imenso canal de lágrimas. Nos Estados Unidos, as perdas de Lincoln, Elvis, Kennedy, Luther King, Net King Cole, Hemingway botaram aos prantos multidões, aos milhares.
E aqui, em nós, que já não temos tantos ídolos, nem líderes, nem cientistas tão relevantes, já porque ainda não perdemos a mania de ter coração, também aqui, nós pranteamos os nossos queridos mortos. Num passado já longe, pranteamos Tiradentes, um pouco mais para cá a luso-brasileira Carmem Miranda, o Chico Viola, Getúlio (apesar de ditador), Juscelino, a Elis Regina, Tancredo Neves e, já no funil do tempo...
Pobre do Brasil, muito mais empobrecido de gente brilhante, gente da gente, humanos de honor, de coração e muito valorosos! Ai, que tragédia!... Morto o nosso tricampeão de Fórmula Um, Aírton Sena da Silva (grafo corretamente). Vencia na prova, como sempre o fez, na hora fatal. Por ironia, de tão laborioso, sucumbiu num 1º de maio, Dia do Trabalhador, em Imola, Itália. Esse fato inominável e longínquo levou-nos – a nós todos – à comoção nacional. Ao desafiar a velocidade, a fatalidade ultrapassou em curva perigosa o nosso ídolo de Fórmula Um. Sena, ás do automobilismo universal. E quem se conforma com isto?
Ai, que tragédia!... Agora se vai D. Zilda Arns, que se muda em definitivo para a Mansão do Topo de Cima. Morta, a fazer o bem, lá no distante Caribe, pela mão de um terremoto. Um Haiti devastado, o país feito escombros. Milhares de mortos e feridos. E D. Zilda, lá, em santa missão de paz e amor, antes do abalo sísmico. No fatal instante, seu brilho: ela, no Haiti, que seria logo mais devastado, dando palestra para uma seleta plateia, e num templo. Deixa o Brasil e o mundo bem mais pobres de valores humanos.
Agora, sem a companhia dela, que semeou tanto bem às crianças da sua Pastoral da Criança, entidade frondosa que se esgalhou abundantemente sobre vários países, todas as mães pobres, de famílias miseráveis, todas as crianças pobres, todos nós, pobres ou ricos, ficamos no eito do mundo muito mais desassistidos da bondade. Como no caso do Aírton Sena, a fatalidade ultrapassou D. Zilda. É assim: a fatalidade sempre ultrapassa os nossos ídolos. E quem se conforma com isto?
Fort., 21/01/2010.