POR QUE NO HAITI E NÃO AQUI?

O terremoto abalou fortemente minha estrutura. Não, eu não me encontrava no Haiti no momento da terrível catástrofe, estava em casa gastando tranquilamente a vida sem sequer conjecturar que a terra pudesse engolir-me inesperadamente.
O tremor diabólico chegou a mim via satélite,sem remexer uma única franja do tapete da minha sala de TV, mas esmigalhou minhas emoções.
Uma noite de insônia e pesadelos, dois dias de estarrecimento e um acúmulo de perguntas órfãs foi o saldo que o cataclismo, que ocorreu há milhares de quilômetros do Brasil tropical abençoado por Deus, causou em mim.
Não tem como não citar Deus num momento destes.
Olho para o teto da minha casa intacta e num desabafo de quem já viveu o suficiente para se dar o direito de ter intimidade com Ele, peço as respostas:

“Por que no Haiti e não aqui? Por que somente alguns tiveram a sina de estar no lugar errado na hora errada? Por que o pai, o marido, a esposa, o filho, o amor de alguém? Por que Zilda Arns? Por quê? Por quê? Por quê?”

Nenhuma réplica. Porém, das incontáveis vezes que tive um confronto direto com Ele, lhe pedindo a devida explicação para minha ignorância diante dos fatos, aprendi que as respostas não vêm pelo som de nenhuma voz, e sim pelo despertar dos meus próprios sentimentos.
Assim sendo, a insônia resolveu embalar-me a noite inteira, e nos raros momentos em que consegui ludibriá-la acabei me perdendo nas ruelas de um pesadelo cheio de escombros.
Acordei exausta de tentar fugir do pavor, mas não morri.
Ok, estou viva!
Posso escrever, letra por letra, sobre as coisas da vida e da morte. Registrar cada exclamação de felicidade e cada ponto de tristeza. Esmiuçar tudo aquilo que vejo ou sinto e transformar em algum tipo de elixir capaz de curar ou simplesmente entorpecer.
Mas, o que vi não me agrada!
Não aceito quando a morte resolve cumprir sua tarefa economizando tempo, levando uma quantidade enorme de vidas e podando tantas mais de seguirem vivendo viúvas dos seus.
O que senti me assusta!
Não gosto quando o hálito da morte vem sussurrar em meus ouvidos “eu existo mesmo que ainda não tenha tocado você.”
Não suporto a impotência diante dos desígnios que estão além da minha capacidade de compreensão.
O som do terror que não ouvi ensurdece minha coragem.
As catástrofes naturais soterram meus alicerces seguros, deixando-me trôpega sobre um futuro que não posso prever; nem você, nem ninguém.
As imagens do fim, que não vivi,antecipam minha sina, a sua, do mundo.
Sobre cacos de insegurança continuo, ironicamente, vivendo o tempo que me resta escrevendo sobre o tempo que, para muitos, acabou.
Interpretando a canção de Gil e Caetano.
Pensando no Haiti que não é aqui!
Rezando pelo Haiti que é aqui!

Léia Batista
Enviado por Léia Batista em 20/01/2010
Reeditado em 20/01/2010
Código do texto: T2039820