Amor Breve de Metrô

Sua pele branca era um chamariz ao pecado. Seu cabelo ondulado era um cartão-postal do cuidado que tinha com a própria aparência. Aliás, a coloração de seu cabelo lembrava a do pássaro chamado Chamariz. A boca, um tesão. Carnuda, grande, uma senhora bocarra. Os olhos, de um azul glacial, tinham um quê de descendência nórdica. Os ossos do rosto, belíssimos. A face bem emoldurada. Era uma beleza livre de pós e tintas, natural. Eu contemplava uma beleza que duraria a eternidade. E era na eternidade daquela beleza que eu repousava a minha retina diariamente.

Todos os dias, no mesmo horário, aquele vagão servia de palco para as minhas quimeras. Dia após dia eu tinha uma fonte de inspiração de um metro e sessenta e oito de altura. Exemplo:

Segunda, estávamos nos beijando no show cover do Smiths.

Terça, pedalávamos emparelhados na ciclovia do Ibirapuera de mãos dadas.

Quarta, começávamos a nos esfregar no carro, em pleno trânsito. Era incrível a capacidade de concentração que ela tinha ao volante: dava seta corretamente e só ultrapassava pela esquerda, enquanto eu explodia o maxilar engolindo suas tetas.

Quando o tesão ficava insuportável, ela parava o carro na primeira ruela vazia que aparecia e trepávamos ali mesmo. Quando não, ficávamos em quartos de motel com teto solar e ela era assim, adorava ter as estrelas como testemunhas do nosso amor.

Na quinta, passeávamos de metrô despretensiosamente. Fotografava ela (sic) com a cara enfiada naquela espiral de ferros da Estação Penha, de costas para a Marginal e pro Shopping D, na Estação Tietê, nos masturbávamos ao som de marretadas e britadeiras na Estação República.

Na Estação Consolação, compramos Marx e apostilas de Excel naquelas máquinas-vendedoras-de-livros. Íamos da Vila Madalena ao Alto do Ipiranga curtindo o ar-condicionado dos novos trens. Ficávamos tensos no túnel entre a Ana Rosa e o Paraíso: rezava a lenda de que uma mulher havia cometido suicídio ali, e na curva do túnel, a assombração dela aparecia. Tem curva naquele trecho?

Na sexta, jantávamos pizza frita e nos apertávamos no noitão do HSBC. Ao amanhecer, tomávamos um copão de pingado, de canudinho, na padoca que fica em frente ao Cemitério da Consolação.

E assim minha imaginação ia fluindo com lugares e atividades diferentes pra cada dia da semana.

E o tempo ia passando. Trocamos alguns olhares, vez ou outra. O vagão, já meu amigo, me encorajava, "Pô, fala com ela, quem sabe!?". Eu, sofredor do mal da caligenofobia, não conseguia tomar uma iniciativa, com medo de sofrer a mesma metamorfose que Gregor Samsa. Me transformaria num inseto caso fosse ignorado/hostilizado/desprezado e/ou desdenhado pela minha pretensa noiva.

Aquele amor breve de metrô já estava saindo dos trilhos. Me dei conta disso quando bateu o desespero: já não a via tinha mais de uma semana. Aquele mesmo vagão, antes meu amigo e cheio de cor, me hostilizava e adquiriu a cor cinza típica das paredes das estações, o que me deixou num comportamento misantrópico.

Oh bosta de vida! "Then looove, love will tear us apart, again."

O trânsito travado na Vila Matilde. Um buzineiro só, porra!

Ah, era um casamento sendo realizado. De dentro da lotação, ainda consegui ver um pedaço da cauda do vestido da noiva. Um sujeito meio afeminado saiu de um táxi correndo levando o buquê de orquídeas no estilo cascata e me tapou a visão do rosto da dama. Eu hein!

Que bonitinho, o casal. Que sejam felizes para sempre. Amém.

Duas semanas se passaram e minha paixão de lábios grossos e olhos glaciais não deu mais as caras. Eu estava amando. É a explicação, já que, mesmo não a conhecendo, sentia sua falta. Procurei-a durante essas duas semanas: andei em todos os vagões, dez minutos antes e depois do horário que a gente costumava se encontrar. Cheguei a ficar prostrado na catraca da estação que ela descia, esperançoso de que ela apareceria. Sem sucesso.

É, deixa pra lá, afinal, foram mais de duas décadas vivendo sem saber que ela existia, que diferencia faria, afinal? Eu poderia me apaixonar por mil mulheres no metrô! Branca, negra, amarela. Ruivas, loiras e morenas. Agnósticas, católicas, espíritas, evangélicas. Peitudas e magrelas. Gordas e bundudas. Cavalas e gazelas. Casadas e solteiras. O leque de opções era amplo. Eu não deveria colocar esse cabresto invisível, não mesmo.

É, deixa pra lá, dá pra sobreviver sem te-la. Sem vê-la. To nem aí, to aqui, feliz e sozinho, indo passear na Paulista, dentro desse vagão empesteado de casais apaixonados.

Foi numa bela tarde de sábado, onde o sol sorria para todos e distribuía raios alaranjados, se preparando para o crepúsculo e tingindo as nuvens, com o céu lindamente azul de fundo, que tudo aconteceu.

Sentadinho, batendo o pé no assoalho do vagão. Vários casais de mimimi. O trem pára na Estação Brigadeiro. "Preciso lavar esse cadarço". Pessoas entram e saem. A porta fecha. Eu, sentado no banco duplo, com aquele banco solitário à frente. "Licença", ouço uma voz feminina dizer ao longe. Levanto a cabeça pra falar "claro" e meus olhos são então parafusados naquela tão cobiçada íris azul.

"Deus", pensei. Com uma suposta coceira na nuca, arranquei o fone do ouvido. "É agora."

- Vai amiga, me mostra.

O banco solitário foi ocupado pela amiga da semi-deusa. Discretamente, abaixei o volume do mp3.

Ela tinha mesmo que andar com aquela amiga a tiracolo? Saco!

Eu sentia meu coração descompassado. A palma das mãos úmidas. Senti o suor brotando na testa. Mas que merda essas reações do corpo, para que servem, afinal?

- Ai, ficaram lindas!

Disse isso tirando um quadrado da sacola. Era um álbum de fotografias.

- Que linda a capa, amiga.

Que linda, a capa! Era minha paixão, excessiva, putaqueparivelmente linda demais na capa. Ela e um cabra sem sal nem açúcar na foto. Um sortudo qualquer. E na contracapa, uma foto da mão dos dois, já devidamente aliançadas em cima do buquê. Buquê de orquídeas, no estilo cascata.

- Ai, dá aqui logo pr'eu ver.

Esticou o braço dando o álbum pra amiga ver, deixando à mostra seu novo acessório, apetrecho, a cruz contra os vampiros da cidade grande: a aliança dourada na mão esquerda.

- E a lua-de-mel, como foi?

- FOI LIN-DA! Chegando em casa te mostro a nossa foto onde o Rio Negro se encontra com o Rio Solimões.

Por que o marido dela não caiu no rio, cheio de piranhas assassinas?

Nas fotos, o casal se beijava, aparecia com os amigos, com os pais, com o padre, atrás do bolo, com os padrinhos, se beijando no carro, dançando a valsa. Que alegria, que felicidade! Uma cambada de raparigas de maquiagem borrada se matando pra pegar as orquídeas casamenteiras. Que inferno, a minha vida!

Por que uma tribo de canibais não atacou o marido dela?

- Eu não te conheço de algum lugar, moço?

Ela tinha piercing no septo. Uma tatuagem no pé. Pelo que pude ver nas fotos da lua-de-mel, uma tatuagem na barriga. Pernas grossas. Seios grandes. Umas clavículas maravilhosas. Era uma puta de uma gostosa. E era linda, como era linda, por Deus, ela foi agraciada com a beleza que é feita no melhor portal do universo! E estava ainda mais linda sem aquela roupa social que eu estava habituado a despir com os olhos. E estava ali, me perguntando se me conhecia de algum lugar. Pensei nos meus planos, nas quimeras de segunda à sexta, na minha covardia. E naquele cara ali das fotos. Que maus bocados teve que passar pra casar com uma mulher daquela? Não fazia idéia. Mas era um merecedor. Seja pela dedicação àquela dama, ao amor por ela. Pelo tamanho do pau. Pelo saldo bancário. Pelo modelo do carro. Pela capacidade de ficar do lado dela nas alegrias e nas tristezas, jurando isso perante á Deus e o mundo. E o que eu era na vida dela? Nada. Aliás, era sim. Uma vaga lembrança...

- Moço!? Oooi, tem alguém ai?!? - E caiu na risada com a amiga, zombando da minha cara.

- Se você me conhece de algum lugar!? Acho que não, eu tenho um rosto muito comum, você deve estar me confundindo com outra pessoa.

- Aii, será!?

- É sim! Se me permite o atrevimento, o seu marido é um cara de muita sorte, sabia?

- Por que?

- Você é deveras linda. Não se acanhe. Perdoe-me o atrevimento. Tens uma beleza exótica, formosa, livre de adornos da Avon, hahaha.

- Ai, obrigada! - Ficou sem graça. - Nós vamos descer aqui moço, tchau!

- Ah, eu também.

A porta abre, elas saem na frente, já esquecendo da minha existência.

Normal.

Dou um suspiro olhando a máquina-vendedora-de-livros, "Olá, Excel Avançado" e me dirijo atrás delas em direção à escada rolante.

Na catraca, lá em cima, enquanto ligava o MP3, ainda pude ver de soslaio o maridão feliz, esperando-a com as mãos cruzadas na bunda, segurando um presente. Um livro? Um DVD? Uma caixa de KY?

Sei lá!

Ah, sei sim, disfarcei fingindo comprar outro bilhete e consegui ver a capa do livro: O Grande Gatsby.

Essa minha vida...

Dali meia hora eu brindaria comigo mesmo em homenagem ao que eu resolvi chamar de "Diáspora de Amor Breve de Metrô", enquanto meus olhos caiam vorazmente na meia-arrastão da morena que (eu já havia reparado nela) pegava metrô na mesma estação que eu, no mesmo horário. E estava ali, no balcão do bar, sozinha. Por que não?!

Aquela pele escura era um chamariz ao pec...

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 20/01/2010
Reeditado em 24/01/2010
Código do texto: T2039732
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