O Turvo Pequeno.
Meu lar está no coração.
Meu lar não existe mais.
Não sou daqui nem de lá.
Sou prisioneira das lembranças e é nessas lembranças que está o meu lar. Por isto decidi escrever minhas memórias. Para resgatá-las. Para fazer uma ponte entre o que fui e o que sou. Uma ponte entre o lá e o aqui. Para tornar-me inteira.
Por um instante consegui me lembrar de tudo. Tudo o que? Um momento, mas o relembrei com tanta nitidez que o vivi novamente. Senti. O Turvo Pequeno. O rio que passa no fundo da casa de minha avó. Passava. Porque nem a casa é mais de minha avó nem o rio é o mesmo. Teria sido um dia um rio ou sempre foi um riacho? Não sei. Era o único que eu conhecia, então a mim parecia um rio. Enorme. Eu atravessei entre as moitas de bambu e desci o barranco até chegar `à água barrenta. Estava escorregadia e fria. Senti o frescor de meus pés sendo transportados para o corpo todo. Bem, ao lado, uma pequena pedra limosa. Coloquei um dos pés sobre ela e fiquei olhando os detritos passarem. Nada de mais. Galhos soltos de árvores que a tempestade noturna lançara ao rio. Senti vontade de segui-los, para ver onde iriam parar. As águas do Grande Rio os esperava e os levaria para onde estou agora. Mas o Grande Rio seguiu seu caminho até o infinito do mar. Eu fiquei.
Turvo Pequeno. Pensar que eu nem sabia seu nome. Era apenas o rio. O rio que um dia inundou e atingiu os porões da casa de minha avó. Um rio que queria ser mar e veio buscar no depósito da Venda dos tios o sal que lhe faltava. Mas todo sal que ali havia não faria de um rio um mar. Quando muito, lágrimas. Cantei esse rio muitas vezes. Transformei-o. Mas era sempre ele. O rio sem nome. O rio que crescia e encolhia conforme a minha imaginação mandava.
Pouco a frente, o pontilhão, por onde o trem passava. Indo e vindo. Unindo Minas Gerais ao Estado do Rio a tal ponto que só fui descobrir minha mineirice quando segui o rio. Antes eu me sentia totalmente ligada a outras paragens. Barra Mansa. A cidade para onde as pessoas iam por vários motivos. Comprar. Passear. Trabalhar. E até se transformar em bandido. Para lá iam todos. A elite e a escória. Fui lá algumas vezes. Não muitas, mas foi o suficiente para senti-la como parte de mim por muito tempo.De lá chegava a farinha que fazia o nosso pão. De lá chegavam os jornais que lia. De lá meu pai trazia as maçãs vermelhas e perfumadas, embaladas em papel roxo que vinham da Argentina. Os chocolates. E os presentes que Papai Noel mandava. De Lavras chegavam porém os bens mais preciosos: os primos. Todos com nomes começados pela letra A. Almir, Amauri,Anesia, Aimée, Aloisio, e mais tarde, bem mais tarde, a temporona, Alexina. Como as férias demoravam a chegar naquele tempo que não passava. Eu ansiava por elas para viver.Mal sabia eu que estava construindo as minhas raízes. Raízes que não quero nem poderia arrancar. Porque são profundas. Alcançam o patamar de minhas lembranças e alimentam a minha alma.
A casa de minha avó tinha um porão e um quintal, que chamávamos simplesmente de terreiro.No quintal havia uma roseira branca, bem debaixo da janela do quarto de minha avó. Era uma janela pequena e não muito distante do solo. Mesmo assim nunca tive coragem de passar por ali. Outros passavam e eu invejava. E dava a volta e descia pela escada da cozinha. Com meus tamancos. As vezes carregando tabuleiros cheios de pães de queijo. O forno de lenha ficava no terreiro, a boca virada para casa e debaixo de um rancho onde também se lavava toda a roupa da família, colocada para secar em varais de arame apoiados em hastes de bambu. E uma horta, uma figueira,um chiqueiro, um galinheiro e uma privada de fossa que mais tarde foi desativada. E o rio onde os meninos nadavam pelados. E onde muito mais tarde ,quando escrevi meus dois primeiros romances, parte da trilogia Morro Alto, eu fiz cadáveres passarem boiando por ali.
Segundo capítulo do meu livro de memórias - Uma casa na frente do rio, um rio no fundo da casa. O primeiro capítulo foi publicado aqui e tem o mesmo nome do livro.
Foto - Busca Google - Como não achei uma foto do Rio ilustrei com a foto do trem vindo de Barra Mansa e passando por Arantina em direção a Lavras
Meu lar está no coração.
Meu lar não existe mais.
Não sou daqui nem de lá.
Sou prisioneira das lembranças e é nessas lembranças que está o meu lar. Por isto decidi escrever minhas memórias. Para resgatá-las. Para fazer uma ponte entre o que fui e o que sou. Uma ponte entre o lá e o aqui. Para tornar-me inteira.
Por um instante consegui me lembrar de tudo. Tudo o que? Um momento, mas o relembrei com tanta nitidez que o vivi novamente. Senti. O Turvo Pequeno. O rio que passa no fundo da casa de minha avó. Passava. Porque nem a casa é mais de minha avó nem o rio é o mesmo. Teria sido um dia um rio ou sempre foi um riacho? Não sei. Era o único que eu conhecia, então a mim parecia um rio. Enorme. Eu atravessei entre as moitas de bambu e desci o barranco até chegar `à água barrenta. Estava escorregadia e fria. Senti o frescor de meus pés sendo transportados para o corpo todo. Bem, ao lado, uma pequena pedra limosa. Coloquei um dos pés sobre ela e fiquei olhando os detritos passarem. Nada de mais. Galhos soltos de árvores que a tempestade noturna lançara ao rio. Senti vontade de segui-los, para ver onde iriam parar. As águas do Grande Rio os esperava e os levaria para onde estou agora. Mas o Grande Rio seguiu seu caminho até o infinito do mar. Eu fiquei.
Turvo Pequeno. Pensar que eu nem sabia seu nome. Era apenas o rio. O rio que um dia inundou e atingiu os porões da casa de minha avó. Um rio que queria ser mar e veio buscar no depósito da Venda dos tios o sal que lhe faltava. Mas todo sal que ali havia não faria de um rio um mar. Quando muito, lágrimas. Cantei esse rio muitas vezes. Transformei-o. Mas era sempre ele. O rio sem nome. O rio que crescia e encolhia conforme a minha imaginação mandava.
Pouco a frente, o pontilhão, por onde o trem passava. Indo e vindo. Unindo Minas Gerais ao Estado do Rio a tal ponto que só fui descobrir minha mineirice quando segui o rio. Antes eu me sentia totalmente ligada a outras paragens. Barra Mansa. A cidade para onde as pessoas iam por vários motivos. Comprar. Passear. Trabalhar. E até se transformar em bandido. Para lá iam todos. A elite e a escória. Fui lá algumas vezes. Não muitas, mas foi o suficiente para senti-la como parte de mim por muito tempo.De lá chegava a farinha que fazia o nosso pão. De lá chegavam os jornais que lia. De lá meu pai trazia as maçãs vermelhas e perfumadas, embaladas em papel roxo que vinham da Argentina. Os chocolates. E os presentes que Papai Noel mandava. De Lavras chegavam porém os bens mais preciosos: os primos. Todos com nomes começados pela letra A. Almir, Amauri,Anesia, Aimée, Aloisio, e mais tarde, bem mais tarde, a temporona, Alexina. Como as férias demoravam a chegar naquele tempo que não passava. Eu ansiava por elas para viver.Mal sabia eu que estava construindo as minhas raízes. Raízes que não quero nem poderia arrancar. Porque são profundas. Alcançam o patamar de minhas lembranças e alimentam a minha alma.
A casa de minha avó tinha um porão e um quintal, que chamávamos simplesmente de terreiro.No quintal havia uma roseira branca, bem debaixo da janela do quarto de minha avó. Era uma janela pequena e não muito distante do solo. Mesmo assim nunca tive coragem de passar por ali. Outros passavam e eu invejava. E dava a volta e descia pela escada da cozinha. Com meus tamancos. As vezes carregando tabuleiros cheios de pães de queijo. O forno de lenha ficava no terreiro, a boca virada para casa e debaixo de um rancho onde também se lavava toda a roupa da família, colocada para secar em varais de arame apoiados em hastes de bambu. E uma horta, uma figueira,um chiqueiro, um galinheiro e uma privada de fossa que mais tarde foi desativada. E o rio onde os meninos nadavam pelados. E onde muito mais tarde ,quando escrevi meus dois primeiros romances, parte da trilogia Morro Alto, eu fiz cadáveres passarem boiando por ali.
Segundo capítulo do meu livro de memórias - Uma casa na frente do rio, um rio no fundo da casa. O primeiro capítulo foi publicado aqui e tem o mesmo nome do livro.
Foto - Busca Google - Como não achei uma foto do Rio ilustrei com a foto do trem vindo de Barra Mansa e passando por Arantina em direção a Lavras