Efeitos colaterais da cerveja choca
Um alerta importante: cervejas com o prazo de validade vencido são perigosas. Desencadeiam uma série de efeitos colaterais importantes, que podem levar a uma sequência de acontecimentos muito mais extensa do que o amargor na boca e uma improvável dor de barriga que sua simples ingestão poderia provocar.
Bem, explico.
Tenho uma geladeira sobressalente muito antiga, que uso para quando a reunião de amigos é maior do que a capacidade que minha geladeira oficial pode suportar. Porém, faz tempo que os amigos que comparecem são em número manejável; portanto, a geladeira antiga está lá, vazia e desligada, para não consumir energia. Sem uso há uns três anos, mais ou menos. E fechada.
Dia desses, resolvi abri-la. E quase caí de costas ao descobrir que não estava tão vazia assim, pois encontrei ali dentro meia dúzia de latas de cerveja de minha marca preferida. Conferi, já temerosa, a data de validade. Tristeza! Jazendo inúteis ali e agora absolutamente vencidas, derrotadas mesmo, há mais de um ano. Como pude me esquecer disso e, pior, deixá-las ali, desamparadas e lacradas, com tanta sede rondando?
Inconformada, fiz o mea culpa enquanto as abria, lata por lata, vertendo fora o precioso líquido. Felizmente pareciam chocas, caso contrário não resistiria e as colocaria para gelar. E percebi que havia muito mais coisas assim em minha casa: inúteis, antigas, estragadas, sem uso, vencidas, guardadas pelo simples fato de ninguém se dignar a abrir uma porta ou um armário. Ou, caso aberto o armário ou a porta, essas coisas entulhadas que dependem de um destino, de uma certa determinação e de um tempo disponível são vergonhosamente ignoradas. Muito mais cômodo olhar para elas, dizer mentalmente “outra hora eu vejo”, fechar a porta e seguir o curso da vida.
O cheiro da cerveja me induziu a tirar uma semana de férias. E naquela semana abri muitas portas, armários, gavetas. Joguei fora um sem número de coisas inúteis, doei outras tantas um pouco mais úteis; desfiz-me de tudo o que não me servia, que nem lembrava de sua existência, ou que fazia muito tempo que não usava. Aproveitei também a idéia da simplificação da vida e me livrei de muitas coisas que tinha em dobro: com exceção dos sapatos e das meias, que não nos servem senão aos pares, um exemplar de cada coisa é mais que suficiente para se viver. Na medida do possível, tornei-me mais simples.
Incluí na faxina externa um olhar mais arguto para dentro de mim. Tirei as mágoas engavetadas e alguns fantasmas que me incomodavam e que se camuflavam nos cantos. Sobrou muito espaço para as novas emoções. E o chão ficou absolutamente livre da sujeira das injustiças e da poeira fina das expectativas frustradas, porque limpo com um pano especial de trama bem aberta denominado Perdão.
Com tanta faxina física e emocional, minhas unhas estavam um caco e meus cabelos, destruídos. Passei uma tarde no salão; voltei de unhas feitas, cabelos curtos, olhos brilhantes e esperança nova.
Leveza e simplicidade, esquecimento e mudança. São os efeitos colaterais da cerveja choca, cujas latinhas já reciclei. A próxima vítima dela será seu antigo abrigo - nada mais que a geladeira velha, que pretendo doar em breve. Aliás, as cervejas vencidas me incitaram a perguntar: pra que duas geladeiras? Quando meus amigos vierem em número grande, simplesmente boto um pacote de gelo no tanque.
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Este texto faz parte do Exercício Criativo - Efeitos Colaterais.
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