- Que lugar é este? - indaga meu companheiro de viagem
- Pires Belo. Mais trinta e sete quilômetros e estaremos em Catalão – respondo.
A resposta tem entonação alterada. A voz sai meio cinzenta de um ponto mais profundo da garganta, atravessa um caminho - ladeado por ansiedade, alegria e saudade de um tempo distante que volta sempre - e chega aos lábios, abafada. As sensações têm nomes de pessoas e lugares e me transportam para um espaço único, exclusivo. Assim como os pássaros cruzam a estrada, estou também cruzando a minha história, do sempre para a eternidade. Tudo - e ao mesmo tempo nada - é igual.
Quero silêncio. Preciso respirar fundo, porque as lágrimas estão ameaçando cair e não posso parecer fragilizada logo agora que faltam poucos quilômetros para entrar no meu passado, que outra vez vai se transformar em presente. É uma mágica espetacular! Há lembranças demais para administrar. E que lembranças! São as melhores da minha vida. A cada metro da estrada, a infância e a adolescência voltam, em “flashs” luminosos sobre a realidade nua e depois vestida com as roupagens com que se apresentou a cada visita, nesses últimos trinta e oito anos.
- Há uma igrejinha lá no alto... comenta o parceiro.
- Ali é o Morrinho do São João - informo.
Para o visitante, é só uma igrejinha no alto do morro. Para mim, rebobina a fita até a infância mais tenra: balõezinhos, pipoca, quentão, pandeiros, roupa caipira, bolo de mandioca, canjica, poeira, gente da roça e da cidade na mesma festa.
Lembra também os visitantes, a cidade olhada de cima esticando..., as luzes de Goiandira, o namoro do Manoel e da Sheila Zarife, quadros da Dona Mariinha, fotografias, padrinho João Fayad, os peregrinos vindos da roça.

A placa informa: Catalão a 5 km. Explico que a cidade tem duas entradas.
- Uma é pelo antigo “campo de aviação”, passa pelo bairro do São João e desce para o centro. A outra é pelo JK, que sai direto no centro, passando pela “estrada de ferro”.

Geralmente alterno as entradas. É que gosto de ver as novidades. A entrada do JK está diferente, devido ao grande número de edificações novas. São fábricas, concessionárias, moradias populares e trânsito de caminhões à esquerda de quem vem do norte.
A primeira parada é sempre a casa da madrinha Helena e da Julieta, minha irmã. Tenho a opção de visualizá-la como é hoje e como era na minha infância: calçada alta, portas grandes de madeira. Aliás, as Ruas Vinte de Agosto e Coronel Afonso Paranhos aparecem assim, com dupla roupagem. Vejo-as como se fossem a cara e a coroa de uma mesma moeda ou o direito e o avesso de uma vestimenta romântica.
Às vezes esqueço que a Prefeitura virou Fórum, que o Banco do Brasil mudou mais para trás, que as casas da Vó Coqui e do tio Salomão agora são lojas. Enumero mentalmente as modificações: apartamento da Beth França, casas da dona Cafa (vendia chanclish), da tia Ivete (mãe do Prefeito Adib), da madrinha e da Bibita (reformadas), da tia Norma e do Felipe (iguais). A Rua Coronel Afonso Paranhos já se chamou Rua Estreita. Ali morávamos Sheila Nanete, Beatriz e eu (grudadinhas). Minha casa foi totalmente reformada pelo primo Marcelo, que agora é seu morador.
A cidade está cada vez mais bela, sinalizada, arborizada, com córrego tratado e canalizado. Agora tem a represa, que é o novo ponto turístico e de lazer da moçada.

Catalão é a sementeira onde fui plantada sob um composto de ótima qualidade, regada com bons princípios e cultivada em um mutirão de solidariedade. É fruteira carregada de doçura, é tijolo de rapadura mergulhado no melaço da gargalhada sem limites, é espelho que refletia o preço que a vida ia impor. Era melhor rir muito de mim, de nós, dos outros, de tudo e de nada, enquanto fosse possível. E eu ri com elas, as amigas de sempre: Shirley, Sheila N e Sheila Z, Beth, Bibita, Valéria, Beatriz, Maura Hummel.
Amo Brasília, mãe adotiva, que me acolheu de braços abertos e me alimentou com seiva de boa qualidade, desde a porta aberta para a vida adulta. É a terra dos meus descendentes, das conquistas profissionais e dos novos amigos.
Mas Catalão, minha mãe natural, é sombreiro sob o qual descanso, rindo das mesmas bobagens ou chorando com as mesmas amigas pelos que já não podem rir conosco.
Nunca me esqueci da Festa do Rosário em outubro. Onde quer que eu esteja no dia vinte de agosto, informo, orgulhosa, a quem está ao meu lado:
- Hoje é aniversário da minha cidade.
E mentalmente envio-lhe uma mensagem: - Feliz aniversário, Catalão!
Sandra Fayad Bsb
Enviado por Sandra Fayad Bsb em 27/07/2006
Reeditado em 17/08/2019
Código do texto: T203386
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