Saudade maldosamente amiga

(“Existem mortos que não enterramos, e sim semeamos “– Dom Helder Câmara)

Não conheci pessoa tão “doce” como meu pai. Era mesmo uma doçura de pessoa. E, por doçura, estou querendo dizer simpatia, generosidade, compreensão, carinho, compaixão...

Ele era um homem feito de ternuras. Isso tudo também diziam (e dizem) as pessoas que o conheceram. Não conheci ninguém sequer que dele não gostasse. A admiração e o amor que soube provocar vinham de todos os lados: era o amigo leal, o homem simples, o papo perfeito, o filho querido, o marido amado.

Sua prosa era como um batimento cardíaco, rítmico, suave, mas que freqüentemente terminava em risos. Lembro-me até hoje dos divertidos "causos" que ele contava.

Emociono-me sempre ao ouvir o quanto ele permanece no coração de tantas pessoas. De repente, um sabor, um perfume de flor, uma visão, provocam uma viagem através do tempo, as vezes temperada por pitadas de alegria, outras de tristeza, de belezas escondidas, tantas recordações, um verdadeiro baú de relíquias que por vezes abro e revivo momentos que jamais esquecerei.

Guardo lembranças tantas, momentos que juntos passamos, do seu cuidado e o carinho com minha mãe e meu irmão. Agarrou-se sempre a um estilo de vida sem rancor, sempre muito gentil com todos, um coração de ouro.

Quem o conheceu pode descobrir que a bondade fica. É como semente que germina. Ele sempre soube tratar àqueles que, com chinelos no arrasto, no compasso dos andarilhos , lhe pediam socorro.

E por falar em “compasso”... era amante da música, rodeando-se frequentemente de amigos para cantar, acompanhado de seu violão, que guardo até hoje com muito carinho e, no qual, aprendi também os meus primeiros acordes tentado imitá-lo. Tudo isso está tão vivo em minha mente que parece ter acontecido ontem...

Como esquecer as inúmeras tardes que recebíamos a visita dos amigos músicos, entre eles, o querido e saudoso Renatinho Perina (conhecido como Tinão), acordionista simpático, extremamente respeitado no cenário musical, que se agregou à nossa família e como um irmão conviveu conosco, sempre muito atento para ouvir o que o meu pai, com o seu incisivo sentido de humor, tinha para desfiar naquele dia.

Desde quando minha memória e observação infantil se ligaram à realidade, essas imagens não saíram mais das minhas lembranças. Que tempo aquele – tempo da inocência, da chaleira no fogão, do aroma e sabor da erva-cidreira apanhada na horta do quintal, dos bolinhos de chuva, tempo em que os cachorros viviam espaçosos pelos quintais, alguns de estimação, mas não incumbidos da guarda da casa porque naquele tempo vivíamos com muita liberdade, sem grades nas casas, desenvolvíamos nossa psicomotricidade motora em cima dos pés de manga, das jabuticabeiras, sem desconfiar que a maldade, tão covardemente, ceifaria a vida de uma pessoa tão querida, tão amada por todos nós.

O pouco que viveu, o fez em consonância com seu tempo, numa harmonia perfeita com o ambiente em que vivia. Lembrei-me, agora, da música tanto cantada por ele:" ando pulando como sapo pra ver se escapo dessa praga de urubu, ai de urubu" - como isso me contaminou, gestos de amor e simplicidade impregnavam esse ambiente feliz!

Era um pai amigo mas, muito mais que amigo, era um pai preocupado conosco. Não media esforços para nos ver felizes!

Recordo-me das saídas dominicais. Visitávamos nossos parentes – tios e primos queridos. O violão nunca fora esquecido! Passávamos o dia todo nos sítios, ao lado do fogão à lenha, pão “feito em casa”, lingüiça frita, polenta, música, muita música - uma delas tinha esse refrão: “Nosso Senhor que tristeza/quando regresso à tardinha/ debruço e choro na mesa/lembrando a vida que eu tinha...Por Deus, escuta-me Nosso Senhor/ Mandai do céu por favor sinhá Maria, outra vez”.

Por vezes reservava um tempinho para as viagens de agradecimento por bênçãos recebidas. Que divertidas viagens!

Herdou de minha avó ou de minha mãe, não sei ao certo, um gracioso apelido – LILO (carinhosa abreviatura de Alcindo), palavra que para mim tem o sinônimo de afetuoso, amável, poético.

Para aqueles que o conheceram fica, além da saudade, o prazer de ter conhecido um homem que se tornou um referencial de caráter, de bondade, de pessoa exemplar. Para mim fica o orgulho maior de ter sido o seu filho caçulinha, o seu sempre "cuitelinho".

Aonde quer que você esteja, pai, receba de mim, o mais carinhoso beijo de saudade - saudade maldosamente amiga.

Beto

Carlos Roberto Furlan