SER HAITIANO HOJE

O que é ser haitiano vivo, neste momento? É vagar a esmo pela paisagem de uma terra sem nome, a clamar de sede e de fome, a chorar pelos mortos, grande parte deles insepultos, a chorar pelo nome de uma pátria repentinamente perdida. Judeu errante de si mesmo, na terra irreconhecível, ser haitiano hoje é viver o apocalipse antes de soarem as trombetas, é ver o fim do mundo, o fim do seu mundo, do seu mundo há poucos dias seu, mesmo pobre, até miserável, ainda assim rico perante a visão dele agora.

Mas, ser haitiano hoje é também ver os irmãos homens chegando de todas as partes do mundo, cada qual representando e trazendo uma pequena gota de esperança, que irá se transformar em rio, num grande rio a fertilizar de novo a terra devastada.

Ser haitiano hoje é tentar, ao lado da fome e da sede e da falta de abrigo e de todas as coisas que compõem a vida dos homens, conseguir sentir nas entranhas a presença ou a quase presença de alguma fé, senão num Deus, nos homens humanos seus irmãos e cada qual também alimentar-se de algum milagre de fé em si mesmo; ser haitiano agora é conseguir erguer-se do chão devastado e caminhar pelas ruas do fim do mundo com o olhar para adiante, para muito adiante, em direção à criação de um tempo refeito nesta mesma terra; em direção a uma terra viva, a uma terra ressuscitada, ressuscitada pelas suas mãos.