Bem súbito
Teve um dia destes que fui vítima de um bem súbito; logo eu, que sou mau, não sou e nunca fui dado a fazer bondades, gentilezas, essas frescuras de gente fina. Ressalto que não sou um sujeito de bom coração, não cultivo sentimentos nobres e nem uso a nova técnica de semear bons pensamentos.
Por isso sei que fui vítima! Não queria ter aquela atitude que tive; por inércia, sempre quis me manter com a tecla “foda-se” apertada.
Então, aconteceu na estação de trem a qual eu embarco todos os dias. Eu saio toda manhã e vou à cidade trabalhar, à noite é a mesma coisa: volto prá minha casa na “perifa”, dentro do verme de ferro lotado de gado, sempre em pé, nunca sentado.
É a estação Francisco Morato. Foi que vi uma senhora negra de ancas largas, vestindo uma camisa do Flamengo, carregando uma dúzia de sacolas de plástico, ela caminhava alguns passos na minha frente, logo, começou a ziguezaguear como uma bêbada, pensei: “Nossa a tiazinha ta muito loka!”, aí ela caiu nos trilhos rodeados de pedregulhos da estação que embarco todo dia! O mais dramático foi que o trem vinha lentamente, porém, resoluto na sua impossibilidade de parar, e passaria por cima da tia, ela iria virar spaghetti!
Não me lembro quantas pessoas havia ali na estação e nem quantas presenciaram aquela cena – fui tomado por uma ânsia de resgatá-la, pulei habilmente nas pedras e tentei erguê-la, só que era gorda e pesada (também negra, mas isso não importa não é mesmo, caro leitor politicamente correto?), tive forças para segurá-la em meus braços como aquelas bonecas de pano e jogá-la na plataforma, suas sacolas cheias de roupa e papéis velhos ficaram e foram estraçalhados; logo após jogá-la na plataforma, ouvi gritos e um forte apito característico de trens...
Minha perna esquerda foi decepada pelo irrefreável trem. Fiquei “cotoco”, hoje em dia eu claudico da canhota; mas eu também salvei a vida de uma pessoa que morreria tragicamente! Eu até tive certa fama, apareci em telejornais que destacavam meu heroísmo, dei entrevistas para programas promovendo o amor ao próximo, ganhei até um botton de escoteiro –bandeirante – mor, tornei-me amigo da mulher que salvei; sua família sempre me convida no Natal para cear o frango e a farofa.
Aquele bem súbito me deixou uma marca física, uma deficiência que carregarei pro resto da vida – mas isso não me deixou revoltado ou arrependido, não, não sinto nada disso... eu só estou muito ressentido de não conseguir dar umas bicas nas pombas lá da estação que embarco todos os dias.