Surf de banquinho.
Um amigo meu, quando há anos passou num concurso pra dar aulas na UnB, teve que fazer umas tantas matérias no Departamento de Pedagogia. E me contou algo que aprendeu numa delas -- as crianças que recebem estímulos adequados dos pais, ou de quem as crie, desenvolvem mais e melhor a inteligência. Isso sempre me pareceu bastante lógico e evidente.
E quais seriam estes estímulos?
Em primeiro lugar, evidentemente, as manifestações de amor e carinho.
Em segundo, as conversas e o contar histórias. E quanto mais rico e variado seja o vocabulário que se use nelas, tanto mais a criança desenvolverá o seu próprio, adquirindo assim instrumentos pra se expressar plena e adequadamente pela vida afora.
Em terceiro lugar, os jogos lúdicos, sejam os que trabalham as habilidades físicas e motoras, sejam os que desenvolvem e aprimoram as habilidades cognitivas e de raciocínio. É através das conversas e dos jogos que as crianças aprendem a fazer associação de idéias e a exercitar a criatividade.
Isto posto, posso afirmar que o que funciona com crianças, funciona também com os adoráveis seres caninos.
Estudiosos da inteligência dessas criaturinhas chegaram à conclusão de que elas têm a capacidade de raciocínio de uma criança de aproxidamente três anos de idade. Quem tem longa experiência com cães sabe isso na prática.
Ora, há crianças que desenvolvem muito mais rapidamente a sua inteligência, em comparação com outras da mesma faixa etária. Além dos fatores genéticos e das influências do meio social, temos aí a comprovação do postulado na tal matéria da pedagogia de que falei lá no início.
Cachorros que recebem estímulos adequados de seus donos -- os mesmos descritos acima em relação a crianças -- não apenas tornam-se mais inteligentes, como também criativos. E podem "compreender" de 200 a 400 vocábulos que tenham relação direta com seus assuntos caninos, aí incluídos os hábitos e costumes do seu dono.
Haja vista o fato universal de que certas palavras parecem ligar um relé na cachola do bicho, como por exemplo "rua", "banho", "coleira", "comida", "senta", "deita", "quieto", "colo" e por aí vai.
Reparei que famílias de diplomatas que vivem ora num país, ora em outro -- o que os obriga a utilizar a língua pátria em família e a língua local entre as demais pessoas --, costumam produzir filhos poliglotas. Assim também ocorre com seus cães, que acabam assimilando o significado de uma importante coleção de vocábulos e expressões, tanto numa língua quanto na outra.
Resolvi experimentar isso com o primeiro cachorro que tive apenas meu (os outros pertenciam a toda a família), quando fui morar sozinha numa cidade de interior.
Ensinei a ele todos os comandos básicos, além de outras expressões variadas de estímulo e carinho, alternando o português e o inglês. E ele aprendeu direitinho! Tanto que, numa ocasião em que recebemos a visita de uma conhecida minha que é inglesa, logo no primeiro contato ela ficou maravilhada com o fato de o Negão compreender quando ela sugeriu que ele fosse buscar um determinado brinquedo, ou que se deitasse pra que ela pudesse lhe coçar a barriga, ou que parasse de pular em torno dela -- e vocês sabem que ingleses, ao contrário dos latinos, quase não gesticulam enquanto falam.
Daí a exclamação deliciada da moça:
-- He understands everything I say!
(Ele entende tudo o que eu falo!)
O Negão ia além.
Como éramos só nós dois a maior parte do tempo, ele involuntariamente acabou se tornando meu confidente e interlocutor por excelência. Todos os dias, ao chegar do trabalho, sentava-me com ele na varanda e contava os fatos e acontecidos, desabafava minhas eventuais mágoas ou comemorava meus pequenos sucessos. Ele parecia me compreender e adotava a atitude adequada pra cada ocasião.
Mas como todos os dias ficava forçosamente sozinho por horas e horas, para preencher seu tempo e se divertir (ele era um cão muito bem humorado) passou a inventar suas próprias brincadeiras.
Algumas eu tive que proibir, como a que consistia em destruir determinadas plantas ou em levar a mangueira de água pra passear pelo terreno inteiro.
Outras eu estimulei, como o adorável jogo do ossinho. Eu me sentava na varanda e ele se deitava a cerca de um metro de distância. Então empurrava delicadamente com o focinho o pedaço de osso em direção aos meus pés. Eu deveria, por minha vez, usar o pé para fazer o mesmo em direção a ele, como num gentil jogo de ping-pong. A brincadeira durava tanto tempo quanto ele quisesse, que não era muito. E era muito engraçado ver a expressão de desgostosa incredulidade que ele fazia quando algum desavisado chegava e jogava o ossinho pra bem longe e dizia "vai pegar!". Não era esse o espírito da coisa...
Mas de todas as brincadeiras que ele inventou, a mais curiosa e divertida era o surf de banquinho.
Havia na varanda um pequeno banco de madeira, baixo e retangular, do qual ele se apossou tão logo eu ali o coloquei. O piso da varanda era de cimento queimado e ficava bastante escorregadio depois da faxina. Pois esse cachorro descobriu um dia que, ao vir correndo e pular sobre o banquinho, ele escorregava por uns bons dois metros até parar devido ao atrito com a parede.
Era muito gostoso ver o bichão se equilibrando na "prancha", ora vindo de um lado, ora vindo do outro. A parede ganhou um trilho descascado e meio fundo ao longo do tempo, mas eu nem me importei. O que importava era o grande prazer que nós dois sentíamos com a brincadeira.
De todos os esportes dele, esse era o meu predileto. Mas era apenas o segundo na escala das preferências do Negão, cujo esporte campeão de prazer e diversão consistia em latir furiosamente pra qualquer pessoa ou bicho que passasse em frente aos dois portões da casa, indo de um pro outro aos pulos e trambolhões.
Ah, pois é! Ele não era só bilíngue, era trilíngue -- compreendia português e inglês, mas falava mesmo era o cachorrês.
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