O triunfo de Melão

Em sua infância, Melão era daqueles garotos fanáticos por futebol. Lia tudo o que podia sobre o assunto, assistia todos os programas esportivos, jogava diariamente na viela de casa, ou então nas quadras do Colégio Faria Lima e no estacionamento do Bradesco. Melão recebera esse apelido de uma vizinha, pois se parecia muito com um candidato a deputado de mesmo nome. Os jogos marcados contra o time da viela ao lado eram sempre tensos e precedidos por dias de provocação, mas no sábado lá estavam eles pulando o muro do colégio ou do banco para a disputa do “contra”.

Melão, como já contado, era apaixonado por futebol, adorava praticar o esporte amado, mas por mais que praticasse não conseguia jogar bem. A bola vinha em sua direção e ele não conseguia domá-la. Ela sempre ia parar no pés dos adversários que acabavam marcando. Seus companheiros se revoltavam com sua falta de habilidade e o chamavam de perna de pau, mas como eles eram sempre em cinco, não tinham como tirá-lo da equipe.

Aquilo entristecia o jovem Melão. Nas peladas de rua, nas aulas de educação física, ele era sempre o último a ser escolhido na divisão dos times. Ele sempre fora o “café com leite” da turma. Mas seu amor por futebol era maior. Sua teimosia então, nem se fala.

Ele andava pelas ruas do bairro e sempre que encontrava algum garoto da viela vizinha era zoado.

- Lá vem o perna-de-pau! Coloca o pé na forma, seu grosso! Vou tomar tubaína à sua custas nesse sábado.

Apesar da revolta e da vontade de partir para cima dos garotos, ele se continha. Baixava a cabeça em tristeza e caminhava para sua viela. Lá chegando encontrou com os companheiros de time que lhe deram a notícia.

- Marcamos um contra com a viela do Queijinho e você vai ter que jogar. Vale cinco garrafas de tubaína.

Essa era sua grande chance. Uma vitória no sábado seria a resposta à altura aos moleques da outra viela. Na noite que antecedeu o contra ele mal conseguia dormir tamanha a ansiedade. Antes mesmo que seus amigos aparecessem em seu portão para chamá-lo, ele já estava na viela com a bola, treinando alguns chutes.

Os cinco se reuniram e partiram para a batalha. Sim, batalha, pois a cena lembrava uma dessas passagens de filmes de guerra onde alguns soldados partem rumo ao triunfo da guerra. Alguns metros depois da saída da base, lá estavam em frente ao muro do Faria Lima que separavam eles do front. Pularam o muro e lá estava a equipe rival já dando alguns chutes ao gol.

As duas equipes se cumprimentaram cordialmente, mas era nítido o clima de tensão que pairava no ar do ensolarado sábado. Definiram que o duelo seria disputado em dois tempos de 30 minutos, com pausa para beber água nos fundos do colégio.

Começa a partida. De um lado: Andrei, Melão, Michelzinho, Tica e Prê. Do outro; Guga, Tiaguinho, Pet, Rato e Fábio. Logo no começo da partida, Melão ávido por uma vingança contra os seus gozadores, pegou a bola e partiu para o ataque tentando marcar um gol, mas como lhe faltava habilidade, perdeu a bola para Pet que marcou o gol para o time da viela do Queijinho. Instantes depois, novamente Melão aprontou das suas. Cometeu pênalti desnecessário em Pet e os rivais aumentaram sua vantagem. Depois Melão falharia em mais um lance.

Resumindo. No intervalo da partida, 3 a 0 para o time da viela do Queijinho e todos os companheiros se voltavam contra Melão proferindo todos os palavrões possíveis e imagináveis. Mas como só tinham cinco jogadores, não tinha outro jeito; Melão continuaria na partida. Porém, Prê, o mais revoltado com a atuação de Melão, deu uma sugestão.

- Então manda ele para o gol. Pelo menos assim ele atrapalha menos o time.

Todos concordaram e voltaram para a partida. Mas o tempo virou totalmente. Da manha ensolarada a uma nebulosa tempestade. A partida quase foi adiada, mas o desejo das duas equipes em vencer falou mais alto e eles continuaram a partida.

Logo no início do segundo tempo, Prê, o mais habilidoso de todos os garotos, arrancou com a bola em seu campo de defesa, passou por todos os marcadores, deixou o goleiro na saudade e tocou para o gol. Nesse lance, Prê só não fez chover porque São Pedro já se encarregara disso. Ele ainda faria mais dois e empataria a partida. Passado os trinta minutos, o empate teimava em persistir e as duas equipes decidiram que o vencedor sairia numa série de disputas de pênaltis: Três para cada lado.

A viela do Melão começaria batendo os pênaltis. A primeira cobrança ficou sob a responsabilidade de Prê, mas como um Zico em quartas-de-final de Copa do Mundo, Prê foi para a bola e parou nas mãos do goleiro adversário. O futebol tem dessas coisas mesmo, um jogador vai de herói a vilão em questão de minutos. Mas, afinal, essa é a graça do futebol, a imprevisibilidade. Pelo lado da viela do Queijinho, Pet bateu e abriu a contagem. Michelzinho bateu e igualou a série. Rato então pega a bola, olha com um ar de deboche para Melão e parte para a cobrança. Ele encheu o pé, no meio do gol, o goleiro, que não escolheu nenhum canto, acabou defendendo no susto. Depois, Tica marcou e pôs o time de Melão pela primeira vez na frente.

Chegara o momento decisivo. Thiaguinho foi para a cobrança. Ele era o principal desafeto de Melão. Sempre que jogavam, os dois acabavam discutindo. Thiaguinho era desses moleques folgados, que debochavam de tudo e de todos, e sua vítima predileta era Melão. Foi ele quem disse ao garoto que beberia tubaína à custa dele.

A chuva caía incessantemente e a quadra do colégio já estava alagada, mas nada além da vitória importava para aqueles garotos. Melão lembrava dos conselhos da mãe quando o via triste após perder uma pelada e receber gozações pela sua falta de habilidade.

- O importante é competir, meu filho!

Ele nunca dera bola para isso. Só ele sabia o peso que carregava em suas costas por ser sempre o responsável pelas derrotas de seu time. Voltando a partida, Melão sabia que ali era sua chance de redenção e de calar a boca de todos que o criticavam. No meio da quadra, seus companheiros, ajoelhados, se abraçavam e rezavam. Talvez pedindo a São Pedro que um raio caísse sobre a quadra no momento da cobrança, e que o jogador, assustado, batesse para fora. Afinal, era mais fácil isso acontecer do que Melão defender. Mas nada o abalava naquele momento. Ele estava parado, olhar fixo nos olhos de Thiaguinho tentando intimidar o rival antes da cobrança. Ele bateu e Melão se esticou todo, no cantinho, e fez uma linda defesa. Ele não acreditava no feito. Corria em volta da quadra e gritava feito um louco. Os companheiros o abraçaram e passaram a jogá-lo para o alto, e assim fora, carregado, em triunfo, até sua viela. Com sua tubaína em mãos, nada mais importava para Melão naquele momento. Nem mesmo as broncas da mãe ao vê-lo entrar ensopado em casa encharcado todo o tapete.

O futebol tem dessas coisas mesmo, Melão, o café com leite, que vivera anos de execração por sua falta de intimidade com a bola, viveu seu dia de herói e descobriu naquele dia a posição em que jogaria futebol pelo resto de sua vida. E mais: sabia que nunca mais passaria pela humilhação de ser o último a ser escolhido, pois, agora, seria ele quem escolheria a equipe.

“- Como a senhora explicaria a um menino o que é felicidade?

- Não explicaria – respondeu. – Daria uma bola para que jogasse. (Pergunta feita por um jornalista à teóloga alemã Dorothee Sölle.)”

(Futebol ao sol e à sombra, Eduardo Galeano)