Tristezinha maneira
Subitamente o ônibus perdeu a velocidade para dar lugar às pessoas oriundas do campo. É incrível como a vida campeira venceu culturalmente na zona costeira do extremo sul do país. O chamado índio do atlântico sul parece ter deixado marcas espirituais no velho segundo-sargento da Marinha. Homem condecorado pelos serviços prestados durante o segundo grande conflito mundial. Tinha um gato branco que ele ora chamava de Gaivota e, ora de Cisne Branco. Ao chegar alegre e bêbado assobiava o hino inesquecível da Marinha. Foi mais desconhecido do que poderia imaginar em seus arquivos. Todos os dias refletem em mim esse ser que vai seguindo para o mar. Suas histórias de submarinos, horas de submersão, claustrofobia produziam-lhe angustiantes pesadelos. Cada passo do caminho dessas ruas de Rio Grande habita uma lembrança imensa de marinha, regatas, Honório Bicalho.
Distraio-me da perda observando cada fisionomia que sobe ônibus adentro. Sobra então a tristezinha maneira ao modelo dele ser feliz. Decido ir para o mar de ônibus.
Escuto na viagem, reclamações estruturais. “Mal o presidente declarou aumento do salário mínimo e já começou a corrida dos aumentos”. Aquele tipo magro como coqueiro reclamava de tudo, do salário, do pouco espaço no veículo, e parecia viver afogado no puro descontentamento. Eu mesmo me mantive calado, velando mentalmente meu pai e os danos da sua ausência.
Que falta faz ônibus direto até a praia! O tipo coqueiro exclamou no auge da contrariedade: “Cassino é o nome mais feio que existe para balneário! Onde já se viu praia com nome de jogatina…” Ele vinha do balneário chamado Hermenegildo, praia que divulgava ser a maior em extensão do mundo.
A estrada era ruim e o ônibus jogava muito. A linda mineirinha ao meu lado sorriu para dizendo meigamente: está balangando esse trem!
Havia chovido quinta-feira e um só dia chuvoso, produzia enorme quantidade de fantasmas, na álgebra misteriosa do passado. Desapareceu do meu cinema interior no ponto chamado de Bolacha. Ocorrência que favoreceu novamente um balaio de reminiscências. Além disso, ocupou o seu lugar um bêbado desagradável. Tão inoportuno que percorreu a viagem inteira exigindo fogo para o cigarro imaginário. Por sorte no banco traseiro alguém assobiava “Além do Horizonte” do Rei Roberto, para quebrar a melancolia da viagem, parando no último ponto com o assobio completo de “Jesus Cristo eu estou aqui” do mesmo ídolo nacional.
Antes da minha vez de descer o degrau do veículo uma idosa de asas brancas, conseguiu imortalizar um salto quando devia dar um passo, e caiu.
A echarpe voadora cheirava a malva, estufando no meu nariz adusto. Reflexões que mal cabem na memória.
Aos poucos o motor do veículo morreu e com ele as imagens se deslocaram para o centro da cidade litorânea vi o ranzinza passando por mim de braços dados com uma cega. Ela mesma talvez preferisse outro rumo isolado a ouvir a pior realidade do visionário inútil. Cuide-se! Há dez assaltos por dia! Ao passo que um garoto passou emendando: enquanto a polícia corre atrás de viciados! Garoto com a mesma cara dos meus dezesseis anos.