Noite

 
A noite está quente, muito quente. O ar está parado. Ainda é hoje, mas logo será amanhã. Penso em dormir, mas não tenho sono. A noite estaria completamente silenciosa se não fosse pelo tic tac do relógio e as batidas do meu coração. Quebrando o silêncio um homem ri e pela risada percebo que é jovem. O homem ri sozinho na noite quente e a risada se repete intermitentemente. A risada ora sobe, ora desce, mas nunca ondulante ou no mesmo tom, direta. Vai pela noite afora como um acento circunflexo, por um longo tempo. Tento esconder-me desse riso sem propósito e concentro-me no que eu estou fazendo ou pelo menos tento. Um carro passa vadio  na rua e um cachorro late a sua passagem. Aqui a canícula, mais ao sul a força das águas levando tudo de roldão. Ao norte a terra treme e mais ao norte ainda cai a  neve, o frio aprisionando as almas dentro dos corpos e os corpos dentro das casas. Penso em meus irmãos. Dois deles estão molhados ou dispostos a tal, uma está trêmula se não pelo tremor mas pelo medo dele  e há ainda outra enregelada. Pelo menos assim os imagino, em outras terras que não esta, vivendo ou passeando. E por aqui nada há a fazer se não sentir esse calor desesperante. Não posso fechar a janela não posso deixá-la aberta. Embora as grades me limitem tenho medo de levantar a cabeça e ver do lado de lá uma figura qualquer, homem ou sombra, fantasma sem lençol tentando se refrescar. A batida seca da janela assusta uma lagartixa que sai de seu esconderijo. Eu poderia ouvir música, poderia ler, poderia fazer mil coisas esperando o sono chegar, mas de nada sinto vontade. Longe, bem longe, dois cães se comunicam, não sei se são amigos colocando o papo em dia ou se estão namorando. Perto, ouço outras janelas se fechando nessa obrigação que temos de nos proteger, proteger nossos bens. Vem a minha lembrança outras noites, criança ainda, dormindo na casa de minha avó, a porta apenas cerrada, uma cadeira encostada, nem me lembro pra que talvez apenas para avisar a avó que mais um filho estava chegando. Ninguém tinha medo de ninguém e a noite seguia seu caminho trazendo de suas profundezas o cavaleiro da meia noite, esse sim, assustador. Abro a porta do quarto, escancaro, esperando com isso estancar o suor. Tudo inútil. Agora não há mais risada, a graça acabou, o riso se escondeu talvez em um soluço que não pude ouvir. Um bater de asas me avisa que um inseto não pode escapulir pela noite e se encontra preso comigo. Procuro mas não consigo localizá-lo, se levanto a cabeça, se levanto o corpo todo e ando com meus pés descalços pela ardósia fria, ele sente e se esconde. Mas basta eu voltar para o meu assento e tentar me aquietar que as asas começam de novo com seu farfalhar. E a única coisa que me cabe fazer enquanto o sono não chega é brincar com as palavras, minha dona e senhora, serva e amiga. E nesse momento o amanhã se torna hoje e já é um outro dia e o relógio avisa que ontem já era, não mais voltará, não mais será, para sempre passou. E eu penso o que fiz ontem? Minha amiga Helena fez aniversário e eu nem fui abraçá-la, limitei-me a um telefonema, quando ela é tão especial. Tento lembrar o que comi no café, o que comi no almoço que eu mesma fiz, onde fui e pra que fui. Fiz um teste da revista Veja, testando a memória, vamos ver se já esqueci: um castelo onde mora um homem que usa um único pé de meia, come de garfo e  usa escova de dente. No castelo tem um jardim e no jardim uma flor euma que pela flor se apaixonou. No castelo tem uma vassoura, para varrê-lo, um rádio que toca música clássica e um cadeado para a porta. Se alguém quiser chegar até ao castelo pode ir de navio ou de trem. E mal eu penso que vou poder dormir depois desse exercício de memória onde provei a mim mesma que ela não está tão ruim como eu pensava já que me lembrei de todas as figuras mesmo tendo que fazer um exercício mnemônico, um carro barulhento para e uma mulher sai batendo a porta e fala alguma coisa com uma criança que responde bem chorosa como se não quisesse sair do carro e deixar ir embora quem foi, na maior pressa e rangendo os pneus.A passagem do carro desconcentra e eu fico pensando que criança será essa, não há crianças por aqui a não ser quando estão de visita.

Tanto fiz que consegui, o sono chegou e agora preciso correr antes que durma sentada nessa cadeira a cabeça caindo em cima das teclas do meu pequeno notebook verde. Mas olho desanimada para minha cama, com tanta coisa em cima, sem lugar para mim. Ah, Deus, como será este dia que agora começa?
 
 
 
 Maria Olímpia Alves de Melo
 Lavras, 12 de janeiro de 2010