Candomblé -
                Terreiros intocáveis



        1. Só estive uma vez em um terreiro de candomblé. Como aluno de Medicina Legal, visitei, com outros colegas, o terreiro da saudosa Ialorixá Mãe Menininha do Gantois. Idos de 1960.
        Nesse tempo, Maria Escolástica da Conceição Nazaré - que belo nome!-, batizada na Igreja católica, estava em plena atividade e exibia exuberante vigor físico.
        O mundo todo queria conhecê-la. Dona de uma bondade sem limites, seus conselhos eram ouvidos e seguidos por gregos e troianos.
        Quero dizer com isso o quê? Simplesmente que suas opiniões eram bem recebidas por adeptos do candomblé e por aqueles que, como este escriba, estavam longe, bem distante, do seu venerado terreiro, no alto do Gantois.
        2. Uma aula prática sobre o candomblé era dada, todos os anos, no terreiro da Menininha pelo meu professor de Medicina Legal, Estácio Luiz Valente de Lima, catedrático dessa disciplina, no curso de Direito da Universidade Federal da Bahia, sempre acessorado pela professora Maria Tereza Pacheco. 
        No terreiro, os acadêmicos eram acolhidos com muito carinho e respeito.
        O mestre Estácio, no candomblé, encarnava uma de suas figuras da mais elevada estima; era um dos seus beneméritos. 
        Tinha um título honorífico, acho que conferido pelos Orixás. Não me recordo qual.
        Por causa desse título, o terreiro o recebia com uma batida especial dos seus atabaques.
        3. Muito bem. À primeira vista, esta seria uma crônica rigorosamente doméstica; ou dizendo melhor: uma crônica que só deveria interessar aos moradores dessa Salvador de todos os trios-elétricos; e de tantas e péssimas bandas de pagode. 
        Mas uma cidade em que as pessoas de credos diferentes convivem harmonicamente. Cada um cuida de sua devoção. E isso é o que faz Salvador uma terra alegre e descontraída; às vezes até demais.
        Deixa, porém, de ser uma crônica doméstica, a partir do assunto que a seguir ventilo, e que o Brasil deve tomar conhecimento.
        Pasmem! Não é que os traficantes de drogas pesadas estariam, segundo os jornais, invadindo o terreno onde funciona o Ilê Axé Opô Afonjá?
       4. E o que é o Ilê Axé Opô Afonja? 
        É o mais importante terreiro de candomblé de Salvador. Sua orientadora espiritual, se é que posso dizer assim, é Mão Stella de Oxóssi, uma das ialorixás mais queridas e respeitadas do Brasil.
        Os baianos, e os que vivem na Bahia - eu, por exemplo - e que, como frisei, convivem em perfeita harmonia com todas as religiões, estão, e não podia ser diferente, condenando a ação  desses criminosos que desrespeitaram um consagrado terreiro de candomblé.  
        Nunca se viu isso em terras baianas!       
        Destacam as gazetas locais, que do terreiro de Mãe Stella, num ataque criminoso recente, foram roubadas "as placas de cobre que identificavam as casas dos Orixás".
        E não se diga que roubos dessa natureza só ocorrem nos terreiros de candomblé. 
        Salvador, cidade de dezenas de igrejas católicas, vez em quando, os vigários desses templos comparecem às Delegacias para comunicar o desaparecimento de uma imagem secular; ou de utensílios religiosos que permaneciam guardados em alguma gaveta de jacarandá de suas sacristias.
        5. Não vou avaliar como se deva combater esse tipo de crime. É assunto da competência da Polícia. 
        Não sou, nunca fui, aliás, repóter policial. Embora, nos meus tempos de jornal e rádio, tenha feito tudo para sê-lo. Mas nunca me designaram para cumprir essa tarefa jornalística perigosa, mas muito atraente.
        Com esta crônica, o que pretendo, então?
        Escrevo-a, pedindo, claro, a proteção dos Orixás, apenas para rogar aos senhores meliantes da droga que pelo menos respeitem o territorio sagrado de qualquer religião.
        Basta o que eles já fazem com o pedaço desta cidade que ainda resta ao soteropolitano honesto, cada vez mais prejudicado no seu indeclinável direito de ir e vir. 
        Nem à intocabilidade de suas residências eles têm preservada. A violência chega às suas cozinhas; às suas alcovas. 
        Que se mantenha, pois, intocáveis pelo menos as coisas de Deus e dos deuses: as igrejas (todas elas) e os terreiros de Candomblé.
       

 
Felipe Jucá
Enviado por Felipe Jucá em 11/01/2010
Reeditado em 10/12/2020
Código do texto: T2023135
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