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                                     VAZIO
 
 
            Nunca, em tempos piores ou outros, estive vazia como hoje.
 
          Bem desagradável a sensação. Não estou me bastando ser apenas eu. Esse tal de ano-novo já começou e não sei pra que. Talvez este ”começo-de-alguma-coisa” esteja me fritando os miolos. Pois eu estava bem, e só queria continuar a ser e viver na paz que me constitui.
 
            Mas houve um esvaziamento em mim, desde que meu filho saiu pela porta escolhendo não passar o Natal comigo, em família, e em minha casa como combináramos. Aliás, naquele momento, não deu tempo de sentir nada. Foi um espanto, um estupor. Fechamos a porta, olhamos uma para a outra, mãe e filha, e deixamos de sentir qualquer coisa. Ocorreu ali um lapso de tempo não vivido. Nem sofrimento foi.
 
            Nos momentos mais fortes pelos quais tenho passado na vida, já percebi que tenho a tendência de ter a reação de não sentir e nem perceber o que de grave e real está ali no momento se passando. Uma forma de defesa, inconscientemente por certo, temendo que não vá suportar. Já fiz terapia e nunca me foi dito o significado disso.
 
            Acredito que seja uma negação ao óbvio indesejável. Talvez o entendimento seja tão fundo e abrangente, que bate uma lucidez da “coisa” de modo mais rápido que a velocidade da luz, que nem o pensamento e nem o sentimento alcancem a “coisa”. E esta se processa e resta apenas o dano.
 
            Há muitos anos eu tive a certeza de ser amada. E amei igualmente. Eu até largara o meu trabalho de engenharia, pedi demissão. Para viver o amor.
Era um tempo fácil de ter trabalho para quem era qualificado, e eu era calculista de pontes ferroviárias, um trabalho prazeroso e do qual me orgulhava muito.
           
             Mas quando veio a percepção de que não era amada, como acreditara ser na mesma dimensão e veracidade como eu amava, aconteceu parecido, não deu tempo de perceber o que acontecia, nem pensamentos e nem sentimentos ocorreram. Deixara apenas de sentir qualquer coisa. Estabeleceu-se o vazio em mim e nada mais vi e nem entendi. Aliás, deixei de entender as coisas da vida. Passei muitos anos neste estado, como se tal fosse normal. O vazio era normal. Como intolerável ser vazio, a vida foi preenchida com arte, filhos, livros e criatividade. Passaram-se anos assim.
 
            No batizado do meu filho dei uma festa e chamei todos os parentes e amigos, os padrinhos e o Padre Werner, um jovem padre de Cosme Velho, enorme, alegre e todas as crianças o amavam. Todos comeram e beberam, era para comemorar tanta alegria. Eu tomei o maior porre da minha vida. Minha casa era grande e a todos os presentes, discursei na cara de cada personagem presente o que ele representava em qualidades e defeitos. Tudo palavras verdadeiras. A lucidez sobre cada qual foi despejada: quem era “bom” eu dizia todas as suas qualidades. Quem não era “bom” eu discorria sobre seus piores defeitos. Um horror! Eu era a dona da casa. Todos ouviram e escutaram pra si e para os demais. Parece que perdoaram porque eu estava de porre. A festa nem terminou por ai, continuou na maior animação e confraternização. Uma embriagadez generalizada. Ninguém me criticou.
 
            No dia seguinte, dei-me conta que estava caótica. Lembrei tudo que falara na festa, mas percebi que eu não tinha nada a ver com aquele lugar, aquela gente, aquela família, os filhos, o marido, a casa, tudo. O tudo dali nada tinha a ver comigo. Fiquei caótica. Por uma semana escondi meus sintomas caóticos, para não assustar ninguém.
 
            Mas eu me dei conta que não sabia de mim. Que cor eu gostava mais, onde era a Rua México, cujo nome era familiar, mas eu não lembrava onde ela ficava. Eu quase não sabia o que fazia ali. Naquela casa. Naquela família. Saí dirigindo e andava na contra mão, às vezes, demorando a perceber o engano. Tratei de ficar em casa e calada  uma semana, para não infringir em absurdos. Calada, até que o entendimento baixasse. Procurei um psiquiatra, em dinâmica de grupo, que nada me ajudou. Ao fim de um ano, eu é que estava ajudando os demais. Saí. Voltei para a minha mesquinhez. E me preenchi com o meu vazio, minha arte e meus filhos.
 
          Passados anos, fazendo um tratamento médico, a doutora conferiu pela minha carteira de identidade que eu era engenheira. Chamou-me a atenção. Eu não lembrava. E até falei qualquer coisa que não sabia mais nada. Ela sacou que eu não sabia nada era de mim mesma. Apenas ia vivendo “ao-deus-dará.”. Ela se chamava Soraya, espero que esteja bem ainda. E disse que seu marido Gilberto era engenheiro e fazia Perícia Judicial, que ele poderia me ensinar, depois eu reciclaria um curso no CREA, e voltaria a trabalhar. E foi um fato, dois anjos bons me ajudaram a lembrar que eu era engenheira. E foi fantástico, pois voltou tudo que estava guardado no cérebro na área do conhecimento e tornei-me uma perita Judicial, trabalho que adorei e que ajudou minha auto-estima. Como eu pudera esquecer que era engenheira!
 
          Recomecei a engenharia aos cinqüenta anos. E foi uma fase maravilhosa.
 
          Minha vida se passa em décadas.
 
          No ano 2000, pensávamos que não o alcançaríamos. E o alcancei. E vi que já tinha vivido tudo o que pudera viver, ou seja, quase nada.
 
          E, agora, outra década, 2010!
 
          A vida se passa em décadas.
 
          Mas eu vivo em dias. 
 
          Cada dia é de uma preciosidade absurda. 

          Adorei o ano que passou o 2009, pois descobri a alegria de escrever. No escrever, as possibilidades se multiplicam. No escrever se estabelece um diálogo com o AR, com o TEMPO, com a VIDA, com TODAS AS COISAS e GENTES. 

          Escrever também é muito ligado á imagem. Tenho em mãos uma imagem linda, uma imagem que não tem nada de vazio. Por isso não é o momento de mostrá-la.   É preciosa demais, lindíssima e cheia de beleza e conteúdos.


          Assim que passar esse vazio de hoje, esta imagem vai ser o meu tema de escrever.