Transparências
TRANSPARÊNCIAS
(crônica publicada no jornal "Diário Catarinense" de 06.01.2010)
Algo cruzou a sua frente, poucos metros adiante, indo chocar-se contra o ponto de ônibus no Córrego Grande. O projétil caiu ao chão como fruta madura ou casca de banana arremessadas com precisão e velocidade ao encontrarem um anteparo intransponível qualquer. Ouviu com absoluta nitidez o barulho do impacto, talvez os barulhos num intervalo tão pequeno que ouvidos humanos certamente não conseguiriam perceber, de tão próximos, a duplicidade dos sons.
Instintivamente procurou identificar com os olhos, do outro lado da rua, o autor de disparos tão certeiros feitos contra um bem público: não logrou flagrar ninguém, os quintais em frente imersos no silêncio e quietude plácidos das manhãs de feriado no auge do verão, com todo mundo esbaforindo-se nos carros em busca do mar nas praias congestionadas da Ilha.
Mais três passos e alcançava o abrigos dos passageiros. E ali estavam, emborcados no chão, um canário de penas amarelo-ouro da cor da camisa da Seleção e uma canária cinza claro com reflexos e "luzes" de um apaixonado tom amarelo canário em penas selecionadas do peito. Ele morto e inerte, ela despedindo-se ainda da vida com um derradeiro meneio de pés antes de imobilizar-se definitivamente, um voo nupcial na primeira manhã do ano abortado por uma parede transparente de vidro temperado como tantas que começam a usar-se no lugar dos muros das casas, as quais costumam fincar alicerces em zonas de maior densidade de árvores, perto dos morros ainda cobertos de florestas povoadas por pequenos pássaros encantados, encantadores e cantores que, cada vez mais, esborracham-se contra tantas transparências que deixam passar a luz, mas não o vento, o que só serve para comprovar que, não raras vezes, transparências servem para fazer com que alguns de nós deem com a cara no vidro, caindo duros para trás.
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Por outro lado, é estranha e inquietante a reação nervosa das elites militares deste País ainda hoje sempre que alguém advoga o esclarecimento histórico dos fatos ocorridos durante a ditadura de 1964 a 1985 para apurar se foram, mesmo, cometidos crimes pelos usurpadores do poder à luz das suas próprias leis e dos princípios mais elementares dos direitos humanos e das garantias individuais. Ao rechaçarem preliminarmente quaisquer investigação e abertura dos arquivos secretos, lançam uma suspeição generalizada e injusta sobre toda a tropa.
(Amilcar Neves é escritor de ficção e autor, entre outros, do livro "Pai sem Computador", novela juvenil, Atual Editora, São Paulo)