Ano novo do barulho!

Ainda faltam muitos minutos pra meia-noite, mas os precoces pipocam foguetes aqui e ali.

Interrompemos o filme que estávamos assistindo e corremos pra varanda. Somos agora o esquadrão de salvamento de cachorras apavoradas. A menorzinha salta pro meu colo e enfia a cabeça debaixo do meu braço, enquanto aliso os pêlos no seu dorso trêmulo e murmuro palavras tranquilizadoras em vão.

Em meio aos fogos enlouquecidos da meia-noite, formulo com os lábios um "feliz ano novo!" dirigido aos poucos humanos em volta e, através da leitura labial, recebo votos semelhantes. Teria abraçado a todos caso não estivesse ocupada tentando tapar os ouvidos da cachorrinha espavorida no meu colo. Mas o meu sorriso abraça cada um.

A sul e a oeste, em meio às árvores circundantes na vizinhança, surgem os fogos de artifício ao longe. Essa é a melhor parte! De todas as cores e formatos, um após o outro anunciam o começo de mais um ano.

A cadelinha, mais calma agora, sai do meu colo e me libera pra subir na mureta, de onde se visualiza melhor o espetáculo. A cada explosão de fagulhas coloridas, nossos "oooohhh" e "aaaahhhh" ecoam o encantamento.

Já está mais do que provado e comprovado que barulho excessivo faz mal pra saúde. Além de causar estresse e, consequentemente, reações no organismo como insônia, irritabilidade, disfunções digestivas e respiratórias, causa a perda gradativa da capacidade auditiva e os muito incômodos zumbidos perenes.

Então eu me pergunto por quê as pessoas insistem em produzir tanto barulho excessivo o ano inteiro, caprichando especialmente nos feriados e dias consagrados à meditação e ao descanso. Por que a demonstração de alegria há de ser tão excessivamente ruidosa? Seria um indício de histeria ou de agressividade? Ou ainda de falta de neurônios, deixando um vazio silencioso dentro da cabeça, que ecoa com a ocorrência dos mais ínfimos e corriqueiros pensamentos, de modo que a pessoa se sinta compelida a preenchê-lo com muitos e altíssimos ruídos externos?

Talvez o barulho excessivo me incomode tanto por eu ser deficiente auditiva -- tenho cerca de 50% da capacidade de uma pessoa com audição normal. Por isso creio que é possível ouvir-se música ou se assistir a TV num volume que não ultrapasse os limites de nossa casa, a ponto de incomodar os vizinhos. Até porque eles têm o direito de ouvir as músicas de sua escolha, assistir aos programas de sua vontade ou curtir o silêncio de sua própria casa. E se entre eles houver um meio surdinho feito eu, quererá ter o mínimo de interferência externa pra poder ouvir o que lhe der na telha, como a sua mãe ao telefone numa emergência, por exemplo...

Lembrei-me agora da ocasião em que havia acabado de me mudar pra uma casinha que construíra num bairro afastado de uma certa cidade de interior.

No dia seguinte faria a minha estréia profissional local e precisava dormir bem pra acordar descansada e alerta. E como costuma acontecer nestas situações, o sono demorou a ganhar a parada contra a ansiedade e só chegou lá pra meia-noite.

De repente acordei com um trio elétrico dentro do meu quarto, ecoando um tugudu-tugudu-tugudu eletrônico de muitos e muitos decibéis. Os vidros das janelas vibravam. E mesmo com um travesseiro comprimido contra a minha cabeça, o som reverberava vibrante no meu tórax.

Olhei pro relógio na cabeceira e vi que marcava pra lá de uma da matina. Levantei-me e fui pro quintal, onde constatei que a barulheira vinha da rua que contornava o pé do morro, a uns 40 metros da minha casa -- que, por sinal, reinava sozinha no meio de vários quarteirões de lotes vagos.

Não vendo outra solução, muni-me de lanterna e cachorro e subi a rua. Lá chegando, o facho da lanterna, dirigido pro chão, mostrou os brilhos e contornos de um carro parado bem acima da minha casa. Isso me levou a pensar por que cargas d'água alguém escolhe, entre tanto espaço desabitado, o único lugar onde existe uma casa, pra fazer aquela barulheira toda no meio da madrugada... E seria exatamente isso que eu diria pra(s) pessoa(s) dentro daquela boate sobre quatro rodas, solicitando em seguida que fossem buscar um local mais afastado e que diminuíssem o volume do trio elétrico.

Estava achando curioso o fato de que o barulho infernal, além de deixá-los surdos, estava também tornando-os cegos, porque não manifestaram sinal de terem percebido a minha aproximação.

Foi então que cheguei perto da janela do motorista e compreendi o porquê. Foi tudo muito ligeiro e penumbroso, mas deu pra ver muito bem. Um par de vistosos bigodes beijava-se lubricamente, enquanto dois pares de braços musculosos agarravam-se aqui e ali, cheios de esvoaçantes mãos nada bobas.

Sem me abalar com a surpresa, dei a clássica pigarreada que prenuncia uma intervenção e disse educadamente aos berros, pra me sobrepor ao volume extratosférico do som:

-- Será que vocês poderiam... -- a esta altura, ambos os bigodudos se desatracaram e me olharam com a expressão mais arregaladamente surpresa do mundo. Ato contínuo, o que estava na direção ligou o carro e disparou feito um foguete, enquanto eu acompanhava com a cabeça e terminava a minha frase:

-- ... diminuir o som?

Confesso que tive alguma dificuldade em compreender porque pessoas que desejavam discrição e segredo sobre o seu affair, agiram no sentido oposto, atraindo a atenção de meia cidade com a barulheira excessiva.

Bem... depois ri um bocado, não sem sentir um pouco de pena por ter interrompido o namoro caliente e por ter assustado tanto os dois bigodudos pombinhos apaixonados. Mas não me arrependi nem um pouco por ter defendido o meu legítimo direito ao silêncio e ao descanso no meu próprio lar.

Então me deitei e, embalada pela moderada e sedativa orquestra de grilos e os eventuais pios das corujas, finalmente pude dormir em paz.

Maria Iaci
Enviado por Maria Iaci em 04/01/2010
Reeditado em 04/01/2010
Código do texto: T2010604
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