Você tem fome de quê?

É uma verdade inconteste: o ser humano sempre comemorou suas festas ou seus feitos ao redor de comida. Quando havia caça abundante nas cavernas, quando a colheita era farta, quando se desejava uma bênção dos deuses, quando se comemoravam bodas e até na morte, a comida sempre esteve presente - e em muitos casos, em abundância. E mesmo os sacrifícios mais penosos são associados à alimentação: porque o jejum nada mais é do que a ausência de comida funcionando como um tipo de imolação pessoal.

Nas famílias de classe média, o hábito de comemorar mastigando tomou proporções desmedidas, principalmente nas festas de fim de ano, quando a quantidade e diversidade de alimentos nas ceias chega a assustar – e o resultado, em peso, é um mês de janeiro à base de alface e ricota... Porém, em se tratando de famílias latinas – mais precisamente da italiana, da qual posso falar com maior propriedade – até o próprio hábito de comer se torna uma come-moração em si: desde o preparo, que envolve uma antecedência festiva e muitas vezes uma alegre reunião de cozinheiros (em sua maioria mulheres) com tarefas pré-determinadas, até o ponto alto do momento do consumo, com a arrumação das mesas e lugares para todos. Quanto maior o número de comensais, mais intrincadas e divertidas essas movimentações.

Lembro-me dos almoços de Natal na casa de minha avó, na mesa comprida que abrigava toda a família, com direito à mesinha pequena que era colocada como um adendo - onde nós, as crianças menores, éramos escaladas para sentar sob protestos; e naqueles almoços memoráveis o ponto alto era o leitão à pururuca, com o indefectível tomate em sua boca (num ano em especial, meu pai colocou no pobre porquinho assado um óculos, numa tétrica homenagem). Havia também o cappelletti in brodo*, que meu avô, na cabeceira da mesa, não dispensava de forma nenhuma por ocasião do Natal e do Ano Novo; saladas verdes, salada de maionese, frango assado e o eterno arroz-e-feijão. Nesses dias havia vinho e – oh, maravilha! - refrigerante, um luxo para nós, crianças de uma época na qual a bebida das refeições era a limonada ou a laranjada. E só.

Havia frutas e depois um doce simples. O café, moído na hora, deixava seu aroma marcante anunciando o final daquele longo período de carinhoso preparo, que começara dias antes com a manipulação da massa, o sacrifício do porquinho e o estrangulamento dos frangos – o que foi assado e o que virou brodo. Mas, ainda que pareçam ligeiramente cruéis neste relato, os almoços de que falo eram suaves e delicados; não pesavam no estômago e no bolso de ninguém.

Para mim, que sempre fui moderada ao comer, os almoços significavam muito mais que a mera refeição: significavam dias de férias na fazenda com minha prima, e todas as brincadeiras que isso envolvia. Significava dormir na cama patente e acordar muito cedo com as botas pesadas de meu avô sobre o assoalho. Significava também ver meu pai, muito a contragosto, auxiliar na matança do suíno, e minha avó e suas pernas tortas correr compenetrada atrás dos galináceos. Significava ver minha mãe e minhas tias envolvidas com a cozinha por dias, o que em segunda instância significava total liberdade para nós e nossas brincadeiras naquela vastidão.

Confesso que sinto falta dos paladares perdidos com a infância – o brodo perfumado e untuoso, de cor amarelada, que jamais consegui reproduzir; a massa caseira cuja receita minha mãe herdou, mas temo que talvez se perca por falta de meu empenho; o frango assado no fogão a lenha cujo tempero, retirado da horta, fazia toda a diferença; até o inigualável sabor do guaraná de marca indefinida servido quase à temperatura ambiente, para não resfriar as crianças!...

Nina Horta, banqueteira e escritora, em seu livro “Não é sopa”, fala muito apropriadamente em “comida de alma”. Creio que nossa fome fisiológica, que qualquer besteira comestível acalma, nada tem a ver com nossa fome constante de alegrias. É preciso mais do que comida: há que se ter os cenários, as pessoas, os acontecimentos. Essa nossa fome é seletiva e, na maioria das vezes, insaciável.

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* Cappelletti, em italiano, significa “chapeuzinho”: a massa é um triângulo recheado, cujas pontas se unem no centro, dando-lhe o formato característico. O recheio leva carnes suína e bovina, alho, cebola, noz moscada, farinha de rosca e queijo parmesão ralado. O brodo é o caldo de galinha no qual a massa é cozida e servida em forma de sopa.

A prima de quem falo é Maria Alice Zocchio, que em seu texto "Visitas de Domingo" descreve de forma deliciosa alguns de nossos momentos na casa de nossa avó: http://www.recantodasletras.com.br/cronicas/606499