Blecaute na minha rua


    Retorno com freqüência aos livros que mais gosto. Comodista, mantenho-os em locais de fácil acesso. Na minha mesinha de cabeceira, por exemplo, estão alguns.
    A Bahia de outrora, do baiano Manuel Querino, é um deles. 

     Ontem à noite, voltei às sua páginas, numa tentativa desesperada de driblar a infame insônia que me perseguia.
     Havia lido dois ou três capítulos, quando faltou luz na minha rua. 
     Assim que a luz pifou, procurei uma vela no armário da cozinha, e não encontrei. Sabia onde guardara minha lanterna, mas também sabia que, há meses, ela estava sem pilhas. 
    Não tive outra saída senão encarar, vociferando, o indesejável blecaute.

    Quando eu era menino, a escuridão me apavorava. Faltava luz, e logo eu descobria, em cada canto de minha casa sertaneja, a "presença" de "gente" do outro mundo! 
    Ascendia a lamparina, e "notava" que a  fumaça que saía do seu pavio, desenhava aterrorizantes marmotas, no pequeno céu do meu quarto de dormir.
    Tinha medo - pasmem! - até dos inocentes pirilampos. Eles invadiam meu quarto pelas frestas das janelas que davam para o meu  alpendre enfeitado por jasmineiros e buganvílias.
     Também detestava as corujas. Aproveitando-se da escuridão, elas apareciam, "cortando mortalhas", n´algum ponto da cumeeira da minha casa de telha vã. Como eu era ingênuo... e feliz.

     Mas voltando ao blecaute. A luz não retornava, e minha irritação aumentava. Fui até à varanda, e constatei que o apagão não havia atingido toda a Pituba. Só a minha rua fora atingida. Os edifícios mais próximos, todos iluminados, davam-me a real extensão do blecaute.

   Procurei a Companhia de Energia Elétrica para saber o que estava acontecendo; e por quanto tempo teria que ficar às escuras. 
   Uma mulher sonolenta, me atendeu. E antes que eu lhe perguntasse alguma coisa,  ela arremessou: "Tamos providenciando". E só. Chamei-a de moleca malcriada, e desliguei o telefone.

   Há mais de duas horas no escuro, conclui que não adiantava lamentar.  O diabo é que o blecaute além de interromper minha leitura, ainda podia estragar os peitos de frango guardados na minha geladeira. 
    Sem o frango, como, no primeiro momento, segurar o cruel regime que me fora imposto por minha dedicada médica, depois de um maldito exame de sangue denunciar a elevação exagerada do meu LDL? 

   O apagão levou-me à minha redinha. E naquele gostoso vaivém que só as redes têm, adormeci. Não sei quanto tempo durou minha soneca. Só sei que acordei, certo de que meu apartamento ardia em chamas. Não eram chamas. O clarão vinha das lâmpadas, que esquecera de desligar, quando o blecaute começou.

   Com o fim do apagão, voltei ao livro do Querino, e abri na página onde o escritor fala sobre a iluminação de Salvador, no início do século 20.
   Diz  ele: "O serviço de iluminação pública, com lampiões de azeite de peixe, estava entregue a africanos livres, ao serviço da província, vencendo a diária de cem reis, vestuário e alimentação, impondo-lhes a multa de vinte reis por bico de lampião apagado. Nas noites de luar, não se acendiam, excetuando as três primeiras noites de lua nova."

   Fechei o livro imaginando como era bom o tempo dos lampiões a azeite de peixe, e dos lampiões a gás. 
   Hoje,  um pequeno defeito no poste da esquina; um temporal maluco; uma raio atrevido; uma ventania marota, e tudo vira um inferno na cidade grande: os semáforos pifam; os elevadores provocam pânico; o rádio e a televisão emudecem; os telefones calam; cirurgias são adiadas; os ventiladores param; a carne e o peixe apodrecem nos freezers e geladeiras; a cervejinha esquenta; e  a gente é obrigado a interromper uma boa leitura.
       Perdoem-me  pela doidice, mas, quase cochilando, xinguei esse tal de Thomas Edison!
Felipe Jucá
Enviado por Felipe Jucá em 24/07/2006
Reeditado em 23/05/2013
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