Adeus "Tchêco" (Gianfrancesco Guarnieri) !

Crônica/Depoimento

Romeu Prisco

"Tchêco" era o apelido do grande ator, autor e compositor Gianfrancesco Guarnieri, falecido no último sábado (22.07.06), quando integrante do Teatro Paulista do Estudante (TPE).

Tive o prazer e o privilégio de participar daquele grupo, como ator amador, juntamente, além de Guarnieri, com Oduvaldo Vianna Filho (Vianinha) e Vera Gertel, também já falecidos e que se tornaram marido e mulher durante certo tempo. Raul Cortes teve rápida passagem pelo TPE, do qual ainda saíram Milton Gonçalves, Flávio Migliaccio e outros atores de porte.

Fausto Fuser dirigiu para o TPE, com absoluto sucesso, duas peças infantís de Maria Clara Machado, ambas com a minha presença no papel de vilão.

O TPE estava intimamente ligado ao Teatro de Arena de São Paulo, fazendo parte indissolúvel da história deste movimento pioneiro, fundado por José Renato. A maioria do elenco do TPE, inclusive eu, se profissionalizou no Teatro de Arena, que chegou a disputar, na época, a preferência do público com o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), pela excelente apresentação e montagem original de peças de renomados autores nacionais e estrangeiros.

Já como profissionais do Teatro de Arena, lembro-me bem de uma excursão que fizemos por várias cidades do interior do Estado de São Paulo, com prologamento para os Estados da Bahia (Salvador) e Minas Gerais (Belo Horizonte).

Na cidade de Olímpia (SP) o elenco se dividiu e ficou hospedado em casas de família. "Tchêco" e eu fomos alojados na mesma casa. Recordo-me das caras de "sem-jeito" com que nos apresentávamos, no início do período vespertino, saindo direto da cama para a mesa de almoço, sem termos passado pelo café matinal... Coisas da juventude, a quem tudo é permitido.

A temporada em Salvador (BA) superou as expectativas, posto que muitas coisas mais foram permitidas àquele grupo de jovens, diante da beleza dos passeios e das noitadas em lugares típicos, sem contar, obviamente, a ótima recepção obtida pelas encenações.

A arena, que era o nosso palco, foi montada nas dependências do único hotel cinco estrelas então existente na capital baiana, onde só as moças ficaram hospedadas. Os rapazes mal se "acomodaram" numa pensão, que, das estrelas, não tinha nem a poeira.

A mesma temporada em Salvador coincidiu com o lançamento, pela extinta URSS, do primeiro satelite artificial, batizado "Sputnik". A notícia deste lançamento foi por nós recebida quando nos encontrávamos no ateliê do famoso artista plástico Aldemir Martins, tendo sido festivamente comemorada pelo grupo, super politizado e de tendência marxista, posição que "Tchêco" e os demais nunca esconderam de ninguém. Embora eu não comungasse dos mesmos ideais, nem por isso deixávamos de nos entender, em longos diálogos de alto nível cultural, madrugada a dentro.

No repertório de apresentações do Teatro de Arena, se inseria aquele que, sem sombra de dúvida, foi o seu maior sucesso: "Ratos e homens", de John Steinbeck, peça da qual também tive o prazer e o privilégio de participar, no papel de Curley, com Guarnieri no papel de George e outros atores. O sucesso dessa peça bateu recordes de apresentações. Ademais de permanecer em cartaz por um longo período, foi levada à televisão no Grande Teatro Tupi.

Quando saímos de Salvador, com destino à cidade de Belo Horizonte, ocorreu um fato curioso, que se tornou, para mim, inesquecível. A viagem se deu num "moderno" avião Convair, bimotor, turbo-hélice, da Real Transportes Aéreos. Em que pesasse a "modernidade" da aeronave, no meio do percurso um dos seus motores começou a "tossir" e assim continuou pelo resto do vôo. "Tchêco" e eu estávamos sentados lado a lado e, sem disfarçar o medo, ao mesmo tempo em que tentávamos convencer, um ao outro, de que o avião chegaria ao seu destino sem maiores problema, apenas com um motor funcionado 100%, não deixávamos de colocar em dúvida os nossos conhecimentos aeronáuticos, o que fazia crescer a "paura" (leia-se "paúra"), para falar na linguagem dos nossos ancestrais.

A nossa temporada em Belo Horizonte foi, por assim dizer, bem mais "comportada", própria das tradições e do estilo mineiro. No hotel não se permitia aos homens sentar à mesa para jantar sem gravata, acessório masculino que, para nós, era manga de colete (!). Dessa temporada destacou-se a impecável, porém descontraída, recepção que tivemos na casa do poeta mineiro João Etienne Filho. Ali, num sarau como poucos, houve de tudo, com declamação de poesias, encenação de pequenos trechos teatrais e interpretação de músicas.

Na volta para São Paulo, "Tchêco" e eu permanecemos em contato apenas por um curto período, antes do seu primeiro casamento, com Cecília Thompson, já que seguimos caminhos diferentes. Guarnieri prosseguiu na sua brilhante carreira teatral, escrevendo, logo depois, a antológica peça "Eles não usam black-tie", enquanto eu optei por voltar aos estudos, a fim de completar o curso superior, que iniciara antes de ser ator.

Adeus querido amigo "Tchêco", de cuja vida tive a honra de participar e que me honrou com sua participação na minha vida !

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