SE DEUS NÃO QUISER

Os passageiros iam se despedindo do cobrador e ele ia respondendo, com seu jeito manso e ainda sonolento, "até segunda-feira, se Deus quiser". Desci do ônibus de sobrancelha franzida, consternada com aquela tão mecânica quanto desmedida demonstração de fé. Para mim, não pode existir frase mais drástica do que essa: "se Deus quiser".

Se Deus quiser o quê?

Que segunda-feira o cobrador não tenha ganho na megasena e partido pra Acapulco com patroa e bacuris a tiracolo, curtindo o vidão que Ele, Deus, lhe deu?

Que segunda-feira eu não tenha ganho na megasena e não tenha montado minha própria livraria, não sem antes ter agendado uma passadinha básica pela Europa?

Que, pelo menos, um de nós não tenha pego uma gripe, dessas um pouco mais robustas, dignas de um dia inteiro embaixo das cobertas na frente da televisão, fungando e reclamando dessas coisas que "só acontecem comigo"?

Pelo amor de Deus (segunda frase mais drástica), por que será que sempre esperamos o pior... de Deus?

Será que sinônimo de vida segura e felicidade é toda segunda-feira estar sentado no mesmo banco de ônibus, rumo ao mesmo lugar de trabalho, vendo a vida passar pela janelinha, dia após dia, uns mais frios, uns mais quentes, outros chuvosos, mas todos iguais em essência, todos repetidos em espírito, todos não querendo ser mais do que um dia de trabalho quente ou frio ou chuvoso?

Queira Deus, amigo cobrador, que segunda-feira minha vida tenha dado uma reviravolta, que eu tenha recebido uma nova proposta de emprego, uma chance de viagem, um pedido de casamento seguido de mudança de cidade, estado ou país, que o meu bilhete tenha sido premiado, que tenha sido decretado feriado, que Porto Alegre amanheça com neve, que a gripe seja forte (mas breve), ou que simplesmente o despertador não toque, eu durma demais, acorde atrasada e perca o ônibus.

Mulher de Sardas
Enviado por Mulher de Sardas em 27/05/2005
Código do texto: T20067