FANTOCHE. DESGRAÇA HUMANA.

FANTOCHE. DESGRAÇA HUMANA.

O vi ontem, o que acontece quase diariamente quando de minhas caminhadas.

Maltrapilho, esmulambado, com os cabelos densamente sujos, eriçados pela poeira acumulada dos chãos onde dorme, apontados para o céu como a pedirem que o leve, que faça cessar seu sofrimento.

Tem a voz grave e forte, alta, altíssima, com a qual contesta a tripudiação com que é acossado insistentemente por onde passa, um Cristo dilacerado a cada instante.

Por vezes calmo, não incomoda, só revida aos insultos que vai colhendo por onde passa, deixando seu odor de banhos nunca tomados, com seus muitos apelidos alvejado, usados para diminuir.

Tem rosto, mas não identidade. É o louco do bairro que não fere, não expropria nem agride, nem pede para ser xingado.

Ontem ao passar em frente a uma quitanda lá estava ele a pedir uma tangerina.

O proprietário, suponho, da pequena quitanda entregou a tangerina, grande, mas como preço escorraçou-o como a um cão sarnento.

Do alto de sua dignidade como pessoa, embora com as vestes encardidas e engrecidas pelo volume de sujeira, esbravejou e gritava que o “caridoso” não prestava e como um David de Bernini flexionou o corpo, mão em riste empunhando a tangerina a buscar o alvo, o “caridoso” que não parava de insultá-lo.

Mirava insistentemente. Parei para assistir a cena como que chamado por seu conhecido timbre de voz.

Meu sangue fervente italiano que me levou a muitas contendas quando jovem, hoje dominado com muitos freios pela maturidade, mas ainda inquieto, mirava com ele aquele alvo merecedor de punição, inflamado e torcendo pelo sucesso.

E veio o arremesso. Minha vontade e sua mira frustraram-se, o alvo não foi atingido.

O alvo me olhou e recebeu de mim, de meu olhar de censura, talvez a maior pena que possa ter aplicado mesmo como um julgador, censura implacável, um gritar mudo que foi sentido pelo apenado, que abaixou a cabeça e se dirigiu para o interior da quitanda.

Já não bastava àquele rosto conhecido de identidade desconhecida a madrastra sorte, precisava a sociedade a que também pertenço, se valer do infortúnio de um ser para lhe impor mais desgraça sem ao menos pagar-lhe um mísero preço para ser seu fantoche.

Celso Panza
Enviado por Celso Panza em 31/12/2009
Código do texto: T2004913
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