ANTES QUE A CARROÇA RETORNE
Gostaria muito de ter o espaço daquela senhora em São Paulo com a tal síndrome de Diógenes. Despertou a indignação dos vizinhos e do poder público por pura inveja deles. Quem me dera, como Dona Violeta, ter uma casa enorme na metrópole pra guardar tantas coisas das ruas. Agora, por exemplo, eu trouxe um menino roubado nas calçadas. E não tenho um lugar adequado para escondê-lo dignamente.
Três anos ele tem, eu acho. Cabelos escuros por cor e sujeira, barriga saliente, pernas fininhas e um rostinho infinito lambuzado com doce de leite. Não pedi autorização para os pais. Distraíam-se carregando a carroça. Dedicavam-se mais ao menino maior, de seis sete anos, que atento aprendia segredos do ofício. O menor, este que eu trouxe a pra casa, ainda é pequeno. Ainda não vê diferenças entre latas e plásticos ou entre papel e tecido. São poucos seus anos de mundo pra tanto. Entre um sorriso e um tombo, largava os encantos do lixo, e interrompia a mulher sua mãe. O doce de leite estragado lhe trouxera saudades do leite escasso daquelas tetas. Enquanto no alto dos prédios pais e filhos planejavam férias na Disney, meu menino inventava seu parque entre os restos urbanos de um dia.
Eis o menino. Não é lindo? Sozinho não viria. De jeito nenhum. Fui obrigado a trazer numa caixa o seu mundo. Latas multicores, garrafas, tampas, vidros, jornais e panelas. O menino dá cambalhotas e sorri entre os trecos. Nem imagina riscos de cortar-se com faca oxidada ou contaminar-se com bactérias de coisas podres. Atira uma tampa de bule pro alto e um avião sobrevoa. Disquinhos de papel dos perfuradores caem como estrelas em seus cabelos. Uma grande tira de papelão torna-se a montanha russa mais longa da terra. O lixo é um quarto mágico. Igualzinho ao das crianças de meu edifício.
Olhei o menino ainda de peito em seu parque e, filhos não tendo, fiz minha escolha. Contrariando os dentistas, já que está longe da mãe, não hei de tirar-lhe a chupeta. Apenas comprei uma nova e mais limpa. Nunca jamais há de esfregá-la na terra e, depois, deliciar-se sonhando um sabor chocolate no céu de sua boca.
O menino no meio do lixo parecia um deusinho entre homens. Com o poder da infância transformava o lixo em brinquedos e moldava um novo mundo com restos e velharias. Este menino agora está aqui. Desde sua carinha lambuzada com doce de leite me olha pedindo cuidados e abrigo. Juntei todos os potes vazios sobre a mesa, mas menino e doçura são grandes demais pra pequenos espaços.
Na penumbra da tarde, a família subiu à carroça e, açoitando seu velho cavalo, sumiu no horizonte da rua. Ninguém apareceu aqui em casa procurando um menino perdido. Até agora. Mas eu preciso escondê-lo antes que venham roubá-lo pra sempre de mim.
É quase meia noite. Estou exausto. Abri e fechei gavetas, troquei os móveis de lugar, reuni todos os vazios da casa. Em vão. É pouco espaço pra tanto mundo. Por falta de alternativas, estou escondendo o menino adocicado nesta crônica. Espero que você, ao contemplar sua carinha lambuzada de doce de leite, me ajude a criar um mundo maior e mais doce pra ele brincar. Temos até o sol da manhã do amanhã. Antes que a carroça retorne.