PERIGOSOS FAZERES
Leitura e escrita são irmãs siamesas. Leitores e escritores se abraçam em vital simbiose. Ler e escrever, durante muito tempo, foi atividade proibida ou elitizada. Restringia-se aos sacerdotes, escribas, varões, filósofos. Em momentos de pouca liberdade, o plano “A” é providenciar coleiras, gaiolas, grades às palavras. Assim foi no Brasil quando do regime militar. No romance O Nome da Rosa, Umberto Eco apresenta o perigo da leitura na metáfora do livro envenenado. No filme A Sociedade dos Poetas Mortos, um professor de literatura é causa de grandes transtornos numa comunidade. Para Borges, todas as descobertas da ciência não são mais que extensões da mão humana, mas apenas a leitura e a escrita são extensões da imaginação. Sendo a imaginação uma parelha louca, ler e escrever torna-se extremamente perigoso.
Mas, qual leitura e qual escrita são assim dotadas de risco à estabilidade pública?
Ler não é apenas decifrar letras. Escrever não é apenas acolherar palavras. Ler é a arte de entender o pensamento do outro no cotejo com minha experiência do mundo e da vida. Escrever, como o expressa Lya Luft, é saber comunicar o sentido que capto do mundo. Isso é pensar, e “pensar é trans-gredir”, passar “além de”. É desta transgressão motivada pela escrita e pela leitura que muitos têm medo. Ler e escrever, experiência exclusivamente humana, é dialogar e propor possibilidades novas e diferentes para o homem no mundo.
Algumas concepções sobre leitura, entretanto, merecem alguns reparos:
1- Cada leitor tem a sua interpretação – Não é totalmente falsa, mas assaz individualista. Todo sentido tem um contexto. Não se lê a Bíblia como se lê Scliar, Carpinejar como se lê Camões. É preciso deixar-se guiar pelas lanternas do autor sob pena de perder-se em um labirinto antropofágico.
2- Uma sociedade leitora é uma sociedade solidária – É a fetichização do livro. Hitler lia muito. Nem por isso tornou-se um homem solidário. O assassino de John Lennon foi preso com O Apanhador no Campo de Centeio de JD Salinger, uma obra das mais significativas de sua geração.
3- Ler torna a pessoa criativa e aberta – Nos textos de todos os tipos há manipulação, desinformação, ideologias e intenções subjacentes. Ler é, também, um ato de inteligência e bom senso.
4- Ler é viajar por mundos maravilhosos - A leitura é só prazer? Só isso? No meio de tantos prazeres só podia mesmo ser tão escassa! Leitura é ato emancipatório do ser humano, é informação, é exercício de cidadania, mais direito que dever, é ato político, social, de participação no deciframento do mundo. Jean Foucambert, no livro A Leitura em Questão: “Não existe um só campo em que a verdadeira prática da democracia não passe pelo acesso do maior número de pessoas à escrita. Ser leitor é querer saber o que se passa na cabeça do outro, para compreender melhor o que se passa na nossa!”
Um texto pode não ser prazeroso e, mesmo assim, tornar-se intrigante à inteligência.
Não há escrita e nem leitura sem encontro amoroso com as palavras. Pelas palavras damos existência às coisas. Palavras são seres vivos: nascem, sangram, gemem, se apaixonam, choram e sorriem, podem ser assassinadas. Tornam-se conexões sociais, são testemunhas ciganas na história. Ler e escrever é dar asas e alento às palavras. Palavras aladas libertam os homens. Homens libertos querem viver em plenitude. O anseio da vida é ovo em eclosão e fósforo na pólvora.
Sob cada palavra há uma mina. Não pisoteiem as palavras. Temam a literatura!