O fato gerador

Ao vento, o jornal cambaleia, toca o chão, arrasta as folhas secas, mais secas do que suas páginas mareadas pelas lágrimas da escritora pelo que se foi. As poças emundam com sua água barrenta as notícias imundas, finalmente escondem o que não posso mais ver, ela balbucia...
Este seria o início trágico da crônica da escritora desolada, quando pensou sobre seu idealismo juvenil que se perdeu.
Sentada num banco da Avenida Paulista segura a bengala, ou será esta que a segura? Com o tempo, são um único corpo. As manchetes do seu jornal voam longe e levam sua vista até aquele edifício alto, bege; na testeira, o símbolo de uma companhia aérea ou seria de um plano de saúde? Tanto faz. Assim a velha resmunga para si, embora não esteja sozinha.
    Tomando um solzinho, vovó?
    Tá vendo aquele prédio? Ajudei a não tributar — gargalha.
    Isto parece o começo de uma música, vó.
    Pode ser, mas é verdade, por minha conta durante quase dez anos os donos não pagaram impostos sobre a renda.
    Sonegaram?
    Que é isso, minha querida, nunca, foi inteligência da sua avó e competência dos dirigentes.
    Como assim?
    Ah, difícil explicar, você não sabe o que é inflação.
    Sei, vó, quando os preços aumentam.
    É bem mais do que isso. É a falta de confiança no amanhã, só quem viveu com ela beirando os 90 por cento ao mês entenderia bem o que quero dizer.
    Tenta, eu estou prestando atenção.
    Um senhor idoso, bem idoso mesmo, na década de noventa, vivia da renda de aluguel daquele prédio. Ele tinha dois filhos, era engenheiro e sozinho o construiu, assim que chegou ao Brasil. Como o imóvel era dele e as salas, alugadas para empresas, de tudo que ele recebia, quase um terço, mensalmente, ficava para o governo.
    Nossa, bastante, mas o que isto tem a ver com a inflação?
    O homem pressentia que morreria em breve e não queria deixar de herança aos filhos o governo como sócio do prédio que ele construiu. Também, vinha sendo bem difícil administrar as despesas do edifício e repassá-las aos inquilinos, tudo girava como se fossem contas pessoais, então, resolveu abrir uma empresa para administrar o prédio. Colocou os filhos como sócios desta empresa.
     E o aluguel deixava de ser tributado, agora?
    Não, porque a propriedade do imóvel ainda era sua e qualquer transmissão do bem geraria um imposto que na época se chamava Sisa, hoje não sei o nome, são tantos impostos nessa terra. Foi quando o escritório de planejamento tributário que eu trabalhava foi contratado para analisar o caso.
    Aquele escritório que um dos sócios foi atleta e representou o Brasil nas Olimpíadas de 74?
    É, este mesmo, no verão, eles me deixavam chegar mais tarde e levar seu pai e seus tios para as aulas de natação, já contei isso?
    Já, vó, várias vezes. A senhora estava falando sobre a inflação.
    Ah, sim, inflação, fui fiscal do Sarney, sabia? Fiscalizei todos os preços que pude em nome dele. Nunca foi meu candidato, mas tinha um respeito grande, ele era escritor, até era da academia, depois me decepcionei.
    Eu sei, vó, a senhora disse, o pegaram em várias maracutaias, porém não deu em nada, por conta dos interesses do PT em se manter soberano no governo a qualquer preço.
    É, isso, Ives Gandra alertou que nunca a nossa sociedade tinha exercido tão bem a máxima: os fins justificam os meios.
    O engenheiro que não pagou mais impostos, vó, não quer mais contar esta história?
    Querer, querer, eu não quero, mas para você em conto. Como a inflação era alta, batia 20, 30 até 40 por cento ao mês, de manhã você ia ao supermercado os preços eram um, a tarde outro, a moeda não servia mais de base para nenhum negócio ou transação, então inventaram indexadores ORTN, BTN, todos com lastros em dívida pública, títulos do governo, que sempre arrecadava menos do que gastava. Se eu ia vender uma casa para você, por exemplo, não combinava o preço em moeda, contratava com base num indexador que diariamente era reajustado, até os salários chegaram a ter reajuste assim, mensal.
    Ai, vó, vamos embora?
    Espera. Fiz um contrato de venda do prédio para a empresa que o administrava, cujos sócios eram os filhos do proprietário. A dívida era equivalente ao valor dividido pela BTN do mês da transação, e a data da operação foi quase no final do mês. O pai, o engenheiro idoso, doou aos filhos o direito de receber aquela dívida e sobre este tipo de doação não havia o tal do imposto Sisa, aquele sobre transmissão de bens imóveis. Não havia e nem há imposto sobre recebimento de dívidas, então, os filhos pegavam o dinheiro todo mês limpinho de impostos. Pois, o prédio entrou na contabilidade da empresa de um lado como bem — pelo indexador do dia da transação —, e como dívida pelo indexador do mês, sendo assim, a dívida era quase oitenta por cento maior que o bem, pois a inflação daquele mês foi alta, eu nem imaginava que seria tanta quando planejei a transação. A despesa de correção monetária da dívida foi tão grande, que mesmo a empresa recebendo todos as rendas de alugueis, o balanço apontava prejuízo fiscal, portanto, sem imposto para pagar por muitos anos. Você está entendendo?
    Acho que sim, o prédio valia mil e a sua dívida mil e tanto, só por ter dividido a transação por indexadores diferentes, mas tudo dentro da lei. Por que isto te entristece?
    É, tudo dentro da lei... Hoje, não me entristece mais. Este é um fato que me envaideceu na juventude, me rendeu o meu primeiro carro, um Passat 87, branco, com bancos bordô e quatro portas, tipo exportação, coloquei o nome dele de James, tinha cara de mordomo, fazia tudo o que eu queria... — No além, a vovó pairou nas lembranças do seu primeiro automóvel, sua buzina, seu cheiro, o quanto se sentia bonita ao trafegar com óculos escuros, cabelos compridos loiros, ela e o seu James augusto, pelas ruas paulistanas... Parou de devaneios quando lhe veio à memória o fim do carro, numa estrada de Mairiporã, nas mãos de seu ex-marido bêbado. Nesta lembrança, o cimo franziu, enxugou aquela aguinha que vez ou outra sai metade pelos olhos, metade pelas narinas. A força, sua amiga inseparável, mandou o nó que absta a garganta embora, quebrou o silencio, e mais uma vez, quem a acompanhava ouviria parte do motivo de suas lágrimas, sempre impossível mostrar-se inteira e para que serviriam as verdades completas? Continuou sua fala. — Entristeceu-me depois, ao dar-me conta de que ajudei para que uma fortuna não colaborasse em nada com a arrecadação deste país que tem tanta miséria. Mas os anos passaram, a arrecadação aumentou e proporcionalmente a corrupção, me sentia como uma alavanca que propulsiona uma engrenagem que não sana as diferenças sociais, nem contribui para o desenvolvimento sustentável da nação.
    Por isso fugiu da área tributária e contábil?
    De certo ponto. Parei de evitar o meu fato gerador, principalmente, o da indignação. Todas as mazelas deste país geraram em mim a vontade de escrever, registrar palavras e lançá-las para que um dia inspirem mudanças. Sejam no Planalto, no civil, no popular, no coletivo ou no individual, quero noção de respeito à vida, ao indivíduo, desde quando é bem pequenino e ainda não passa de uma célula na barriga da mulher.
    Do que está falando, vó?
    Do texto sobre o aborto escrito por Ives Gandra.
    Mas ele não era tributarista, o que tem a ver com o aborto? Por bastante tempo, você foi petista e ele não, onde suas convicções batiam?
    Ele foi bem mais do que um tributarista, bem mais do que isto. Partidos, profissões, títulos são apenas símbolos que por momentos identificam situações, por vezes paixões, mas na essência, quando o homem se pauta pela ética e pela verdade, não importa a bandeira que carregue, somos todos iguais.
    Está bem, outro dia você me explica essa. Vamos? Está na hora do seu remédio.
— É sempre assim, quando me empolgo, tá na hora de acabar. Como Ives eu vou, mas as palavras ficarão.


Crônica escrita em homenagem a Ives Gandra, projeto do IASP - Instituto dos Advogados de São Paulo e Academia Paulista de Letras.
Eliana de Freitas
Enviado por Eliana de Freitas em 28/12/2009
Reeditado em 28/12/2009
Código do texto: T1999390
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