Boquinha frígida
Na pequena cidade morava José, filho de João que após uma briga de rua, diante do fórum, tornou-se um homem rico e indenizado. Tendo a mulher lhe faltado através de erro médico (encontrada meses após a cirurgia com instrumento cirúrgico em seu corpo) meteu o filho na “escola de faculdade” para lhe tornar doutor em leis. Pai João subiu aos céus durante nova briga entre prostitutas quando seu coração de animal furioso sofreu uma severa atrapalhação, fazendo com que nunca mais chegasse atrasado a nenhum compromisso.
Muitos são os que perdem a cabeça por uma bolsa de moedas o que nos leva a crer que no fundo toda honestidade deve ser vigiada, mesmo com grande dificuldade. Assim o mundo girando lembra uma briga silenciosa de trapaceiros.
Doutor José Rul tornou-se um verdadeiro homem no conhecimento das leis. Ás no exercício do bem falar, e com talento para transformar assinaturas em ouro mediante engenhosos protestos. Sua veia de orador era prodigiosa. Transformava uma ave desossada em ave voadora através de esplêndidos e deslavados arranques verbais. Estava a uma semana do seu mais espantoso caso de abraço entre amantes, transformado por ele em tragédia euclidiana, quando procurou o dentista Iglesias Bárbaro. Dentista sempre pronto para extrações e pagamentos adiantados. Lendário pelo fato de embolsar dinheiro de tratamento, desaparecendo como caracol na horta entre as alfaces, na hora do atendimento. Doença que atacava também o advogado e a advocacia da pacata cidadezinha de luzes e sombras.
Nosso doutor em leis havia condenado a mãe do dentista Iglesias Bárbaro à gorda indenização por causa de cataplasma no caso simples que ele mesmo denominou de “curandeirismo de alcova”.
Esquecido diante da angustiante dor de dente estava ali, humilde, expressando aflição pela dentição inteira. Iglesias Bárbaro recebeu adiantado o serviço para extrações seguidas de implantes. Maço de notas desses que só assistimos em flagrante de gabinete. Com a primeira extração adiantada proibiu-lhe o uso de chocolate com baunilha, além de cachaça e charutos.
Chorando o doutor em leis retornou após três dias para perder todos os dentes que iam sendo extraídos calmamente com maliciosa alegria processual. Sem dente na boca o advogado José Rul esperava a “data dos implantes” que se aproximava cada vez mais da grande defesa no caso de crime euclidiano. Renomado que era também pelo descaso quanto à data para defesas e embargos. Esvaía-se num a lacuna nervosa como ele desaparecia no dia das audiências, permitindo aos réus apenas que contassem histórias sem recursos, deixando as criaturas atormentadas diante do sal grosso da revelia dos juízes enfurecidos.
Era assim e havia sido assim com a mãe do dentista Iglesias Bárbaro no caso simples de cataplasma convertido em gorda indenização. Iglesias estava disposto a deixá-lo, em nome da mãe, saudoso até dos dentes ruins.
Em casa desdentado o doutor em leis José Rul apertava o delírio da raiva estancada diante da desfigura, da fealdade, do compromisso que sem a dentição não lhe traria êxito nem dinheiro. Nenhum lenço de cor substituiria a mão na boca no momento da oratória. Perderia a ação pelo ridículo da boca. Boca feita de cova de onde surgia a língua bífida de cobra sem veneno. O murmúrio foi geral.
- O dentista Iglesias Bárbaro desapareceu da cidade! Bem feito!
- Como faz o doutor tantas vezes diante dos processos que não lhe permitem senão a impressão de tempo perdido.
- Bem feito!
O dentista jamais retornaria à cidade para grande ódio do lobo domesticado com cara de coronel.
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Qualquer semelhança com a vida real é virtualmente mera coindidência.