PRESENTE DE NATAL
Ao lado do posto de saúde uma árvore de tronco grosso, galhos enormes e folhas frondosas proporciona uma sombra convidativa embaixo da qual estaciono, abro a porta do carona, sintonizo na Tribuna Soft FM ou introduzo um disco de ópera ou de música clássica ou de Sinatra ou de Altemar Dutra, armo minha cadeira de praia e escolho um dos quatro ou cinco livros que geralmente me acompanham. Alio a leitura literária à paisagem do Parque Ecológico João Domingos Coelho.
Vislumbrei um casal senil na extremidade oposta do quarteirão quando manobrava para estacionar numa dessas tardes. Ele disparou para a esquina em que eu parava. Ela caminhava com dificuldades, mão e pé esquerdos rijos. Revoltei-me pelo comportamento do marido, abandonando a esposa com dificuldades de locomoção. Ele distanciava-se rapidamente e, quando deduzi que viraria a esquina e desapareceria, se escondeu.
Na medida em que se aproximava, o marido, ouvidos atentos, circundava o tronco. Antes de alcançar a esquina, olhou para os lados, parou e o esperou sair de trás da árvore portando um rosa. Uma rosa que não estava em sua mão. Uma rosa que não estava plantada ali.
Abraçaram-se. Como atores que encenam uma mesma peça centenas de vezes sem perder a paixão da estréia, do primeiro contato com o palco, do primeiro enfrentamento com a platéia, da reticência da recepção imediata, ambos saíram sorrindo.
Baixei as faces sobre o volante. Chorei. Talvez pela sorte de testemunhar o mais fantástico espetáculo de supremacia estética. Certamente pela felicidade de, naquele instante moderno e indiferente, transportar-me para um passado de afabilidade transcendental.