Nem acredito que amanhã vou pisar o palco do Coliseu dos Recreios para cantar Ary dos Santos. Nunca me senti tão bem na minha própria pele. Eu, Susana Félix, dando voz à “Canção de Madrugar” do grande poeta. Geralmente quando referimos o autor de uma canção falamos de quem escreveu a música mas neste caso o letrista vem primeiro. Afinal é por ele que nos juntaram para apresentar este projecto da “Rua da Saudade”. Quatro mulheres cantando novas versões de cantigas cuja letra foi inventada pelo génio das palavras.
Noutro dia encontrei escrito algures que eu tinha uma voz razoavelmente bonita mas que me distinguia pela excelente dicção. Se na altura fiquei desapontada hoje estou radiante por assim ser. Nos poemas do Ary todas as palavras contam e nenhuma pode ser engolida por falta de fôlego ou tiques linguísticos.
Eu, Susana Félix, vou subir àquele palco, onde centenas de pessoas esperarão com fervor ouvir as palavras encantatórias do mestre.
Foi quase um milagre a “Canção de Madrugar” ter passado pelo crivo da censura. Mas pensando bem não foi sequer um acaso. Ary esconde bem o verdadeiro sentido do poema por detrás do que parece ser um caso de um amor não correspondido banal.
Os censores, pobres de espírito como sempre são, não viram a ode que aquela letra é ao amor proibido pela sociedade homofóbica daquela época.
Sente-se, Ary, que cravaste os braços com setas, bebeste o fel do que sofreste, rasaste os teus olhos com água pois querias esse amor que não lograste.
Gostava que pudesses lá estar para me ver entregar às tuas palavras. Para que visses as tuas frases entregarem-se-me todas na boca e depois de bem saboreadas serem oferecidas a todos os que te adoram ouvir.
No parlamento vão aprovar uma lei que permite os homossexuais casarem. Finalmente, sem: “ Choros, nem medos, nem uivos, nem gritos, nem pedras nem facas, nem fomes, nem secas, nem feras, nem ferros, nem farpas, nem farsas, nem forcas, nem cardos, nem dardos, nem terras, nem mal.