Um dente na estrada

À Prof. C. Fabra

Todos os dias embarcam no ônibus seguindo pela estrada de areia. É o caminho para a heróica tarefa da educação. Trabalhar com esses alunos é privilégio poético. Crianças puras que sequer possuem o direito a recreação, aos doces, as alegrias cotidianas do centro urbano. Portanto a felicidade invade os olhos da criançada mal avistam a querida professora que lhes dá recreação, fazendo-os pular corda, brincar de cabra cega, desenhar garatuja, além de assistir aos filmes que animam a quase estéril paisagem do latifúndio. Em sala de aula os professores convivem diretamente com os conflitos sociais, mas quando levados para o interior urbano, certa magia crua se restabelece no contato com a fase agrícola do homem. O fato acorreu na granja orizícola, num pequeno arruado com aproximadamente cinqüenta casas, além da escola.

Ao chegar à sala de aula um pequeno levantou o dedo dizendo ter encontrado um dente na estrada. Foi uma algazarra.

- Na fase do dente de leite, é normal...

- Não, professora. É dente de gente grande. Dente do Albuquerque.

O Albuquerque é mais um desempregado brasileiro de serviço flutuante que havia cortado o pessegueiro na frente da casa em que morava. Pessegueiro que ele havia plantado, revidando assim o prejuízo de estar desempregado. Um trabalhador que agora estava sozinho e desnorteado.

- Deixe-me ver, pediu a professora. Ali estava um canino em bom estado, ainda com manchas secas de sangue.

- Então a senhora não sabe da bochada que levou o Albuquerque?

- Não sei de nada. Como foi?

- O Albuquerque ofereceu trinta reais a Cândida que é mulher do Hans. Ela contou tudo ao marido. O Hans foi até a casa do Albuquerque e lhe deu um soco na cara. Tudo verdade. Está aqui, professora, o dente de prova. É dele...

Como não havia ônibus para cidade na data do infortúnio o infeliz fora avistado pegando estrada à pé, vencendo a dor de dente extraído a força, rumo à cidade. Cidade que em si mesma descreve esperança, mesmo não se sabendo onde ela está.

As crianças desconhecem as razões do dinheiro, não possuem malícia. Só acreditavam piamente que o dente era um troféu arrancado da boca de alguém que devia perdê-lo. Espécie de lei favorável à violência em torno do escasso dinheiro. Lei de bicho. Lei de posse com uma escola silenciosa entre eles.

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