Nostalgia aguda

NOSTALGIA AGUDA

(crônica publicada no jornal "Diário Catarinense" de 16.12.2009)

- Essa mulher é uma bandida! - Ela está possessa, inconformada, grávida da indignação mais sinistra. - É uma assassina! Pegou em armas, vê bem, uma mulher!, pegou em armas, apontou para a cabeça de gente nossa e, dizem, matou uns quantos! Vem aí, agora...

- Verdade! Sequestrou embaixador estrangeiro, esse crime mais pérfido que pode haver, o da supressão arbitrária da liberdade sem amparo judicial - solidário, Ele ajunta argumentos para Ela -, inda mais de uma pessoa de fora, que não tem nada a ver com os nossos problemas internos. Por que pegarem um diplomata, que só está aqui para bem representar o seu país? Para trocar por outros criminosos como eles, por prostitutas como ela?

- Vivemos num país torpe em que os terroristas assumiram o poder com o projeto de se perpetuar para mais se locupletarem. Aliás - Ela quase não se contém: - estamos num continente do mais puro esterco (Ela usou outra palavra), em que os subversivos de ontem, revanchistas e vingativos, agora dão as cartas por todos os lados! Lembro bem de papai me contando dessa gente...

- O saudoso General, teu nobre pai! - Ele se põe embevecido. - Um modelo para mim e para todos os cidadãos de brio, um ídolo perene para qualquer um que conheça seu trajeto de glórias! Não merece o esquecimento a que sua memória está relegada, asseguro-te.

- Papai seria capaz de explodir uma escola cheia de criancinhas inocentes, de bombardear um hospital lotado de enfermos se isso fosse necessário para preservar o regime! - o semblante se ilumina, Ela tem os olhos brilhantes e febris, ardorosos de civismo militar.

- Capaz de abandonar a esposa e sacrificar os filhos em nome da hierarquia... - Ele não esquece de acrescentar.

- Tudo porque esse apedeuta, um nordestino pobre e ignorante, um apertador de parafusos, um analfabeto que tem até sangue negro na família, um retirante sem eira nem beira - Ela ofega -, instalou-se em Brasília e quer fazer sua sucessora! Papai muito me alertou sobre essa gentalha, sempre temeu do que seriam capazes se um dia chegassem ao poder! Não imaginávamos é que eu estaria viva para ver.

- Eles voltarão, tenho certeza - Ele fixa um ponto vago no espaço. - Os portões logo se abrirão e eles retornarão às ruas, de onde não deveriam ter saído. Viverás para ver.

- Este espaço é pequeno demais para toda a minha indignação! - Ela ainda vociferou.

(Amilcar Neves é escritor de ficção e autor, entre outros, do livro "Movimentos Automáticos", novela, Masao Ohno Editor, São Paulo)

Amilcar Neves
Enviado por Amilcar Neves em 16/12/2009
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