Amadeus
 
Timidamente, ele se aproximou de mim. Esticou seus olhos cansados e me olhou, primeiro de alto a baixo, e depois bem fundo nos meus olhos.

Apoiou-se na mesa por um momento e depois se sentou, com um sorriso desengonçado no rosto muito enrugado, como alguém que se desculpasse por algum transtorno que estava causando. E depois começou a falar.

Há alguns anos conheço este velhinho, que me visita algumas vezes por mês, não mais para conversar do que pedir de fato alguma orientação. Seu nome, Amadeus, já diz bastante sobre o seu caráter. Íntegro, honrado como poucos atualmente são, ele    se orgulha de nunca ter agido na vida de forma diferente do que sua palavra expressara.

E que vida viveu seu Amadeus. Noventa e oito anos de batalhas por esse mundo sem fim, vencendo várias e perdendo algumas, que ele carrega a todas dentro do coração cheio.

E hoje mais uma vez ele apareceu, sozinho e caminhando determinado em minha direção, com muito mais vitalidade que muitas pessoas que encontro todos os dias. Com muito mais vitalidade que eu.

Hoje, mais que nos outros dias, ele não precisava de nada. Queria somente conversar alguns minutos e me desejar um feliz Natal, a mim e a outro colega que ele também gosta muito.

Seu Amadeus, que com noventa e oito anos de idade tomou um ônibus e percorreu 30 quilômetros simplesmente para me desejar, com os olhos quase marejados, boas festas, mais uma vez me ensinou muito mais que ele possa imaginar.

Seus olhos cansados e sua pele rota têm mais sabedoria do que dez mil livros que eu possa ler, muito mais que todas as ciências que se vangloriam aos quatro ventos. Amadeus conhece da Vida, e a viveu em toda sua plenitude.

Mas como a muitas coisas nesta vida só damos valor quando perdemos, um sentimento de muita tristeza me invadiu quando vi seu Amadeus caminhando em direção à saída. Seus pés se arrastavam com uma morosidade quase singela e, à porta e com a mão no batente, olhou para trás uma última vez antes de mergulhar, sozinho, na multidão que povoava as ruas.

Por alguma razão eu tive naquele momento a certeza que nunca mais veria aquele velhinho que tanto gostava de mim. Eu soube que Amadeus tinha pego o ônibus pela última vez para se despedir de mim, nesta tarde chuvosa.

Espero estar enganado, espero vê-lo muitas outras vezes no próximo ano, espero vê-lo chegar aos cem, coisa que ele tanto deseja, e quero gastar muitos mais minutos de meus dias ouvindo suas histórias.

Mas como não cabe a mim decidir os caminhos do mundo, espero que Amadeus encontre em paz Aquele que tanto o ama, encontre aDeus.
 
151209
Fábio Codogno
Enviado por Fábio Codogno em 15/12/2009
Reeditado em 17/12/2009
Código do texto: T1980316
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