Caminhoneiros do Brasil!
O caminhão seguia pela madrugada para chegar a tempo como convencionou o dono da mercadoria. O motorista era um homem magro de bigode, separado, dois filhos para alimentar. A esposa estava cansada dele, sempre distante, queria viver outra vida, tinha direito, sobravam-lhe desejos de viver. Quando o marido regressava das viagens estava molambo, dormia muito, demorava pouco em casa, ganhava mal para alimentar os filhos. Tomou como vantagem um advogado que conhecera na lanchonete, comemorando vitória num processo de criminoso solto, graças à habilidade com as palavras e fatos: “Estava endireitando a vida de um condenado vagabundo”, disse, fitando o corpo convidativo de Laura por sobre o reflexo da garrafa de guaraná. Um herói que decerto ganharia para ela todas as vantagens de ser mãe, denodada, do lar, para pensão alimentícia. Queria sair da vida de Mário sem ficar com o enorme prejuízo dos filhos pequenos.
Quando Mario retornou de Diadema mal pode conter as lágrimas compulsivas. Havia sobre a mesa um papel com ásperas ordens judiciais. Para que se apresentasse ao juiz na data e hora marcada. Quase enlouqueceu, pensou em se matar, por dignidade. Um amigo de mau gosto brincou com a desgraça: pelo menos, Mario, você não vai encontrar ninguém dentro do armário. Limitou-se a murmurar angustiado: estou sem rumo. Sem mulher, sem filhos, sem dinheiro, pois receberia em março o salário da carga de janeiro. Precisava conter o desespero. Nada fazia sentido: rádio, televisão, propaganda, promessa de governo, revista, jornal. Havia secado por dentro como raiz do sul plantada no sertão. Temia ainda por cima o volante. Faltava quebrar a barra de direção do caminhão velho da firma. Pelo menos morreria, cairia no esquecimento, sairia da escravidão em que andava metido.
Na cidadezinha o noticiário apenas comentou que “um homem magro de bigode, com documentos extraviados, havia desgovernado na Serra das Araras”. Por dentro da sua alma ferida vinham-lhe reclamações esparsas, sem sentido imediato, “tanto ele quanto os eleitores acreditavam que neste governo haveria regras, medidas concretas para profissionais humildes como pedreiros, carpinteiros, alfaiates, sapateiros, garçons, melhorias as condições de trabalho”. Incentivos diretos, longe da banca das leis e das lutas sindicais. Um impulso normativo da política do trabalho aos trabalhadores em ampla maioria. Mas não. Agora a vida estava emperrada como entupimento do carburador. Corria muito para chegar a tempo, dormia mal, comia pior ainda. Além disso, teria que dividir os ganhos com os filhos, pois do contrário seria encarcerado como assassino abjeto, entre bandidos da pior espécie...
Quando o caminhão tombou entre lágrimas a agonia doeu-lhe ainda mais as vésperas do natal. Lembrou da mãe morta, do pai morto, do velocípede dos seis anos de idade, que agora seria trocado pela cadeira de rodas. Nesse estado que não era seu, longe da casa que já não tinha, e, com as obrigações que não poderia mais prestar, tornou-se um herói de legenda. Herói das estradas, brasileiro...
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