Os pés pelas mãos
Sabe aqueles dias em que o sujeito bota os pés pelas mãos. É, daqueles em que teria sido muito melhor nem ter saído de casa. Pois é, o dia dele foi assim. Até que começou legal, até o meio-dia. De tarde o tormento começou. Era tanto trabalho que não dava tempo nem de ir ao banheiro. A coisa toda estava bem maçante.
Elaborou e corrigiu provas, lançou notas nos diários, revisou as notas já lançadas, solucionou pendências, verificou prazos a ser cumpridos, mesa cheia, sala barulhenta. Puta merda! Acho que não vai dar: - pensou ele sugado por aquele turbilhão de afazeres. Mas prosseguiu “impávido como Bruce Lee”, como diz Caetano. Um suspiro de vez em quando entrecortava a respiração curta bloqueada pelo stress.
Logo mais à noite, a última prova do semestre, uma luz no fim do túnel. - Finalmente! Pensou. O semestre foi um verdadeiro sucesso. Os alunos satisfeitos, as aulas estavam fluindo bem. A merda começou com a idéia de elaborar uma prova acessível que permitisse a todos alcançar uma boa nota.
Elaborada a prova. Chegou o momento de aplicá-la. Duas turmas aguardavam ansiosas pela avaliação. Numa delas ele mesmo aplicaria e, na outra, um professor que atuaria como colaborador. Deu o aviso de que a referida prova seria sem consulta. Um silêncio instável emanou da platéia. As expressões mudaram instantaneamente e o clima de insatisfação se instalou. Alguns alunos reclamaram que não havia sido avisado que a prova seria sem consulta. Outros lembraram que o professor havia afirmado que a prova seria com consulta ao menos ao texto básico.
Ele foi irredutível. Informou secamente que havia decidido fazer sem consulta e pronto! Não explicou que o motivo era que a prova fora elabora de forma bem óbvia sob o texto básico. Permitir a consulta seria, a seu ver, uma imoralidade. Até iniciou uma tentativa explicação, mas se convenceu logo de que de nada adiantaria.
Distribuiu as provas. Em seguida os alunos começaram a fazê-la. Uma aluna pediu para registrar que estava se sentindo prejudicada pelo fato da prova ser sem consulta. – Está registrado disse ele. Num tom levemente sarcástico. Outros se queixaram porque nas instruções constantes no cabeçalho da prova estava permitida a consulta. Ao que ele respondeu que fora um erro e que todos deveriam riscar a instrução porque a prova era, de fato, sem consulta.
Com os alunos fazendo a prova dirigiu-se à porta quando viu, pela vidraça , que os alunos da outra sala haviam se amotinado. Recusaram-se perante o outro professor a fazer tal prova e começaram a sair da sala aparentemente revoltados. O professor da outra sala fez sinal de que os alunos estavam se recusando a fazer a prova. Estava instalado o impasse.
Ele saiu apressadamente de onde estava em direção a outra sala, deixando os alunos que estava cuidando sozinhos, por uns instantes. Quando chegou a ordem havia sido quebrada. Alunos fora da sala. Outros dentro da sala em pé. As provas distribuídas em cima das carteiras. O professor responsável boquiaberto, sem saber o que fazer.
Ele chegou procuradno restaurar a autoridade. Disse em alto e bom tom que a decisão de fazer a prova sem consulta era irrevogável. E que sua decisão, como professor, deveria ser respeitada. Que se sua autoridade não fosse respeitada não haveria porque continuar trabalhando na instituição, pediria demissão imediatamente. Deixou claro que o rumo dos acontecimentos não estava aberto a escolhas por parte dos alunos. Um silêncio na sala. E em instantes, para surpresa geral, os alunos dessa sala começaram a sentar-se e iniciaram a contragosto a realização da prova.
Bom, graças a Deus a situação foi contornada! Pensou ele. Talvez não da melhor forma, mas pelo menos controlada. Ia saindo quando o coordenador do curso que havia sido chamado para mediar chegou. Trocaram algumas palavras onde ele deixou claro seu posicionamento. O coordenador do curso ficou numa evidente saia justa. Tudo não levou mais do que dez minutos.
Ao retornar para sua sala encontrou os alunos deliberando sobre a realização ou não da prova. – Pronto começou de novo! Suspirou. Levantou a cabeça e entrou logo dizendo que quem não quisesse fazer a prova poderia entregá-la. As queixas foram gerais, mas abafadas pela autoridade dos argumentos dele. Um dos alunos levou para o lado pessoal e desacatou-o dizendo que aquela era mais uma prova da irresponsabilidade dele. Que em outras oportunidades o professor já havia faltado com outros compromissos assumidos com a turma. Mencionando a demora na disponibilização de alguns textos.
O revide foi imediato. – Talvez você não tenha nem noção do que significa irresponsabilidade. Disse encarando de frente o embate. O argumento central do alunos era de que como não havia sido dito que a prova era sem consulta eles não haviam estudado o suficiente ou, não tanto quanto estudariam, se soubessem da natureza da prova. Em que pese a força desse argumento ele discordava radicalmente porque sabia que por trás da reação dos alunos estava o descaso com o estudo para as provas e não concebia que os mesmos, vindo para uma avaliação bimestral, não dessem conta de fazer uma prova com elementos básicos, sem consulta, indicando claramente que nem se deram ao trabalho de ler o material.
A situação foi se acalmando e no final todos fizeram a prova. Muitos acharam que estava realmente bem acessível. Outros confessaram que por acharem que a prova era de consulta de fato não haviam nem lido a matéria. O último aluno entregou a prova. Todo um trabalho aparentemente perdido. Certamente uma animosidade havia se instalado. E uma torrente de pensamentos lhe veio à mente. Chegou a conclusão de metera os pés pelas mãos. Poderia ter agido melhor e evitado a celeuma. Talvez não estivesse mesmo na profissão certa. Quem sabe!