CHAPÉUS DA DESPEDIDA

Aqui, neste recanto em que repousam a história dos antepassados e a natureza dos largos jardins, os atos e gestos são caracterizadores da finesse dos fronteiros de Jaguarão, reduto remanescente da prosperidade dos campos povoados de gado e de consequente riqueza, no ciclo do charque, século XIX, divisa com Rio Branco, na hermana República Oriental del Uruguay. A arquitetura local, o bom gosto, a bonomia de seu povo, e a culinária de doces e salgados atravessaram os séculos. Os novos tempos de Zona Franca, no lado uruguaio, trouxeram bons ventos de prosperidade, no tocante à hotelaria: difícil se conseguir vagas. É o que se pode alinhavar nas algibeiras, já que o comércio do lado brasileiro ressente-se de oferta e preços para os caravaneiros vindos de todos os rincões. Há alguns anos o quadro era invertido: o alto comércio ocorria no Brasil, e circulava muito dinheiro. Neste “Recanto das Flores”, pousada de construção mais que centenária, os anfitriões Léa Pantoja Garcia de Lima e Júlio Cesar Gomes de Lima foram guardiões de meu alter ego durante dois preciosos dias. Anjos da guarda para forasteiros. O ambiente recende a música e convida ao recolhimento. Na sala, quartos, bidês, cama, mesa e talheres, a Poesia campeou no éter até na doçura das sobremesas. À noite, requintes para a plenitude de silêncios, loas à memória da língua. Ambrosias e tortas deram algum sentido ao direito de ir e vir. A deglutição é letárgica... Talvez por este entorno de paz, “Faísca”, o cusco amigo, asseado, bem tosado (e seus olhos de espanto), mesmo que no colo de Léa, a sua dona, põe à mostra o mistério de como o amor e a confraternidade são cadinhos para saudades e futuros. Os meus neurônios andarilhos são sempre centelhas de fogo e dificilmente percebem cantilenas. O andamento a que estou exposto é presto. A temperança é qualidade longínqua na grande metrópole. Nesta hora de estrelas austrais de chegadas e partidas, com a brisa da Antártida a soprar, deixo a minha voz no espelho de entrada, no átrio, sob os chapéus da despedida. Levo os atos e gestos sob a epiderme, e cavalgam em mim os duendes da esperança. Enquanto isso, Marilu Duarte, a patronesse anfitrioa, na praça do povo, em frente à Igreja Matriz, encerrando a I Feira Binacional do Livro de Jaguarão, bate a sineta. O futuro dirá dos sons dos livros nos escaninhos da memória. Reverbera a canção temporona de mais de três décadas: “– Ah, como é difícil tornar-se herói. Só quem tentou sabe como dói vencer Satã só com orações... O tempo vence toda a ilusão.” Deus guarde a harmonia dos afetos...

– Do livro ALMA DE PERDIÇÃO, 2009/12.

http://recantodasletras.uol.com.br/cronicas/1971369