Rastros do Caminho

Após a novela começou a passar mal. Sobreveio-lhe um calorão das partes baixas que subiu até vibrar seus olhos no vazio. Deu início aos murmúrios desatinados inserida entre palavras desconhecidas. O marido já estava cansado de dizer:

- Maria, pare com estas novelas que vais acabar ficando doida!

Conhecia todos os atores pelo nome e alcunha. Andava atacada pelos costumes indianos. Delirava a Índia como se tivesse vivido algum dia lá. Saiu do bairro apenas uma vez quando se mudou de casa para casar com alguém que agora considerava inútil. Nessas horas Oduvaldo prestava e corria para pedir auxilio urgente com o vizinho de xadrez e gamão. Criatura de todas as religiões e credos, além de “médium” com grande poder sugestivo. De nome esquisito, é certo que “Lábaro” seria melhor designação para bandeiras; logo acompanhado de sonoro Silva. Da Silva, Lábaro da Silva sentou-se diante da possuída Cotinha solicitando que respirasse fundo.

- Respire bem fundo. Ela respirou, voltando em seguida para o idioma dos delírios.

-Então, senhor Lábaro, o que está se passando com a Cotinha? Confusa? Louca ou pior?

- É um espírito, indiano. Da Índia, concluiu com olhos vegetais, posto que analíticos pintados com a severa expressão de sabedoria. Complementou:

- É oriá, língua sânscrita.

- Da Índia na batata?

- É claro, Oduvaldo, de onde mais?

Em se tratando de espírito poderia ter parte com outras geografias. Desculpou-se Oduvaldo, acanhado, feito colegial embaraçado com revistinha indecente; e como nenhum dos dois desse conta de qualquer idioma estrangeiro, mal versados no próprio, deglutiram-se com grande aceitação. Era mesmo oriá. Podia ser grego, mas era oriá.

Aos poucos as lembranças dos capítulos retroagiam na sua mente de papel obedecendo a lei do tempo e do espaço. O frenesi foi dando lugar ao idioma íntimo, porém acentuados por palavrões tão cabeludos, tão vulgares, que são impossíveis de serem transcritos sem que caiam direto na fábrica de processos. Seu Lábaro, desconfiado, tremeu nas bases. Talvez fosse preciso procurar outro colega para caso de exorcismo.

Assim como veio desapareceu o fenômeno da ocupação dessa pobre alma na mais perfeita das representações teatrais. Cotinha há muito tempo assistia programação que alimentavam seus desejos com asas de fogo. Antes de deitar sorria, nua, diante do espelho do banheiro, lembrando artistas, beijos e outras esfregações. Sofrendo com a própria efígie disponível e solitária no reflexo do cristal. Sorria louca como se sua própria figura fosse outra a lhe rogar um pecado que não admitia.

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