Natalnoel Corruptela

'Ei, quero te apresentar um amigo: Natalnoel Corruptela, vulgo Papai Noel'.

Foi assim que eu fui introduzido a este personagem lendário, e é assim que lho apresento também.

Natanael era um rapaz de papo muito agradável. Ou ao menos, quando conseguíamos entender o que ele dizia.

Segundo o próprio, sua mãe gostava desse nome porque era uma corruptela: de Natal+Noel. Se era verdade? Não sei. Só sei que combinava com o indivíduo, e a gente o conhecia por Natalnoel Corruptela.

Seu apelido mais recorrente era Neo. "Néu" mesmo, não "nêo" e muito menos a pronúncia do inglês "níu". Derivado de Nel - o que já era uma corruptela de seu nome -, Neo era seu apelido mais adequado, visto que vivia criando palavras novas.

Mas ele não queria inventar moda, não. Simplesmente falava como achava que era o certo, os outros é que não o entendiam.

Às vezes era tão difícil interpretar o que ele queria dizer que as pessoas ao redor chegavam a perguntar que língua ele estava falando. Os colegas paulistanos insistiam que era Caipirês. Os interioranos encasquetavam com a idéia que era Mineirês avançado. Já os mineiros discordavam, diziam que era Nelês puro. E ele ficava bravo, afirmando categoricamente que era Português.

Eu concordo com ele: se Português de Portugal é tão diferente do Português do Brasil, por que o Português do Neo não pode ser igualmente diferente dos outros dois?

Esse Português do Neo lhe causava transtornos, por ser incompreendido. Um dia, logo que chegou na cidade grande, Neo estava com um problemão e pediu socorro para um vizinho de alojamento, que o acudiu prontamente. Depois de tudo acertado, Neo bateu com a mão no ombro do outro:

'Gádis!'

Quase deu briga! O outro se ofendeu porque não entendeu que Neo, reconhecendo a boa-vontade do vizinho, estava agradecendo. Segundo sua explicação, 'gadis' é uma "corruptela dupla": um 'obrigado' transformado em 'brigadis' e depois simplificado pra 'gadis', e ao mesmo tempo um 'agradecido' que em sua forma preguiçosa é 'gardecido', que virou 'gardsi', e posteriormente corrompido pra 'gadis'.

Uma explicação um tanto engenhosa, alguns não acreditaram no começo; mas como ele sempre agradecia dessa forma, com o tempo todos acabaram se acostumando.

E não voltou a ter problemas com essa palavra até a primeira acalorada discussão de bar: um dos seus colegas ameaçou falar umas boas verdades, mas na hora acabou amansando e não falou nada. Neo, que não gostava de coisas mal-ditas, bateu a mão na mesa:

'GODÍS!!'

A molecada riu, achando que ele já tava tão bêbado que estava fazendo escândalo à toa, agradecendo ao outro por não começar a briga. Ninguém entendeu que o coitado estava na verdade intimando o colega a dizer, incitando a briga.

'Godis' era apenas seu modo de falar: 'agora diz', que nada tinha a ver com seu agradecimento. Tentou explicar isso, mas os cânticos e saudações eram mais altos que seus berros, e Neo percebeu que era inútil tentar argumentar com gente "alta"; apenas sentou-se e engoliu sua indignação junto com a cerveja.

Como disse, seu apelido recorrente era Neo. Entretanto, devido a um episódio no seu ano de calouro, começou a ser chamado de Noel também. Papai Noel.

Natanael vivia fazendo bicos aqui e ali, mais por hobby que por necessidade. Perto de dezembro, arranjou um bico de Papai Noel. Uma experiência a se lembrar... e arrepender. Quer dizer, não que o trabalho fosse ruim: tinha 2 irmãos mais novos, então sabia lidar bem com crianças, mas não gostava delas tanto assim pra querer ter uma sua logo.

Neo havia "se engraçado" com uma colega de turma; coincidentemente, logo que começou a trabalhar de Papai Noel ela apareceu com a surpresa de Natal:

'...estou atrasada'.

'Trsad? Trsad quê? Num tem aula gó...' (Atrasada? Atrasada pra quê? Não tem aula agora...)

'Não, Neo! Não atrasada, eu tou "atrasada"!!'

'Tan! Miscoi!' (Então! Mesma coisa!)

'Ai Neo! Significa que eu posso estar grávida!'

'Prooonto, essa explicação foi mais que suficiente! Custava falar desde o começo?'

Brincadeira, ele não respondeu isso. As palavras da garota o penetraram feito olhar de Medusa, petrificando-o até o fundo da alma. Apesar dos problemas de comunicação, ele entendeu direitinho a roubada em que havia se metido.

Pior era aturar alguns colegas muuuuito espirituosos e sensíveis, que sabendo da história, provocavam-no:

'O menino Noel está chegando... Não é, Papai (pausa sarcástica) Noel?'

O trabalho se transformou em tortura. Em cada criança via seu filho. E as danadas ainda apontavam o dedo: 'Papai Noel! Papai Noel!', como se estivessem lembrando-o de sua tragédia.

Até que um dia, às vésperas de Natal, a mesma garota apareceu com o "presente de Natal":

'Neo! Veio!'

'O quê? Crans?' (O quê? A criança?)

'Não, bobo! Tou dizendo que não tou grávida!'

De alguma forma, ele entendeu. Ou será que não?

'Tanse quer dizer que "nuvei", é iz?' (Então você quer dizer que "não veio", é isso?)

'Ai Neo, você tem que dar um jeito nessa sua comunicação hein?'

Neo sentiu um grande peso ser tirado de cima de si. Sentiu-se tão leve e contente que em um instante já se esqueceu do susto, e virou-se com um sorrisinho maroto:

'Bom... sicentá mais trsad, quidzer gor a gente pode "tiratras"?' (Bom... se você não tá mais atrasada, quer dizer que agora a gente pode "tirar o atraso"?)

'Neo! Será que você não tem juízo??'

Bom... juízo e habilidades de comunicação: ter, ele tinha. Único problema é que não sabia usá-las...

Houveram muitos episódios marcantes protagonizados por esse lendário personagem. Mas duas grandes dúvidas da humanidade não foram respondidas ainda: como ele passou na prova de português do vestibular? E como ele conseguiu se formar, sendo que os professores não entendiam o que ele escrevia e o reprovavam?

Essas coisas são um mistério. Para seus colegas espirituosos, isso sim era o verdadeiro milagre do Natal. Do Natalnoel Corruptela.

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obs.: obra de ficção. Qualquer semelhança com a realidade pode não ser apenas coincidência ;)

Voo do Corvo
Enviado por Voo do Corvo em 10/12/2009
Reeditado em 10/12/2009
Código do texto: T1970490
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