ESTRADAS DE ME PERDER
lisieux
"Não pode ter sido em vão que fiz tantos planos de me enganar, como fiz enganos de me encontrar, como fiz estradas de me perder... fiz de tudo... e nada de te esquecer..." - Tom Jobim
Estradas sem retas... tantas curvas, tantos despenhadeiros.
Estradas como as deste nosso Brasilzão: sem sinalização, sem acostamento pra que se possa parar e descansar. Estradas de me perder, sem jeito de me encontrar.
Estradas interiores, tão ásperas, tão íngremes, tão longas, tão sombrias, tão vazias.
Roda que roda e nada: nada de chegar ao destino, nada de voltar ao ponto de partida, nada de encontrar abrigo no meio. Roda... quilômetro, quilômetros: mil, dois, três... não se chega nunca a lugar nenhum.
Estrada perdida no meio do nada.
Não pode ter sido em vão... não, não pode! Recuso-me a acreditar que pus o pé na estrada pra achar descaminhos, pra me perder, pra não chegar a ti.
Não pode ter sido em vão tantos enganos de me encontrar. Encontrar-me onde, se fora de mim vivo, se dentro de mim não me encontro, se perto de mim não estou? Encontrar-me só é possível em ti... só no fundo, no meio do teu olhar.
Não... não pode ter sido em vão! Em vão as paralelas em amarelo, em vão as paisagens dos lados, os abismos; em vão o céu por sobre ela, tudo em vão.
De novo, de novo: pensando, relembrando, revivendo, remorrendo, remoendo, reencontrando o desencontro... paradoxo.
Re-fletindo, re-flexo, re-moto, re-trocesso... marcha-a-ré!!! Reflexo do espelho, das águas do rio. Reflexão de refletir pensando e de refletir a imagem. Remoto, mas sem controle. Remoto de estar longe, longe, relembrança de algo tão fugaz!!! Remorrer... sempre morrer, porque só é possível reviver através do sonho e o sonho é fumaça, evapora-se no ar.
Remoer de esmiuçar, de triturar o sentimento, de espremer o coração. O que mais sai dele? Tá tão seco, feito maracujá velho, enrugado e feio.
Reencontro... ah, se pudesse te reencontrar! Mas o que encontro é o nosso desencontro: cada um pro seu lado, cada qual no seu lugar, feito cantiga de roda, coisa também tão antiga. Antiga como eu mesma.
Tudo tão antigo: teu gosto de manga... coisa de criança me lambuzar nela... Aliás, acho que o fruto proibido era uma manga, não maçã! Manga-rosa, bonita e suculenta, sumo doce e farto, cheiro inebriante...caroço duro no meio...
Tudo tão antigo... Estrada que não volta (cadê a sinalização?).
Quero voltar ao quintal da minha casa, com coqueiro e pé de pitanga no centro. Quero voltar a brincar de bondinho, subindo nos buracos dos tijolos da varanda. Quero me deitar no regaço da minha avó pra que ela enxugue minhas lágrimas de criança. Quero fazer dinheirinho de papel, sem me preocupar com o seu valor, porque tinha o suficiente e, se fosse preciso, era só recortar mais...
Quero a minha infância de volta! Onde tá o guarda de trânsito nesta estrada maluca pra me indicar o caminho? Cadê o retorno? Onde posso fazer o balão?
Apesar do cansaço, tenho que continuar a dirigir. A estrada não tem acostamento. Se ainda tivesse a esperança de encontrar-te no fim...
Se tivesse a suavidade do afago, o consolo do abraço, a alegria do sorriso, a doçura do beijo, a profundidade do olhar.
Ah, amado! Aí sim, valeria a pena as voltas e os desvios, os atalhos e os morros, os aclives e declives, as curvas acentuadas e perigosas e todas as ultrapassagens que tenho que fazer, diariamente, a cada instante; apesar do volante ser pesado, volante de caminhão Scania, cortando a estrada, sempre em frente, sem destino certo.
Fiz de tudo... fiz sim! Fiz planos, fiz projetos, lutei, ganhei, perdi... Perdi-me!
Fiz de tudo: fiz das tripas coração, fiz de ti o meu mais lindo sonho. Fiz esforços pra voltar a ser quem fui. Lutei pra me desvencilhar do peso da saudade. Fiz de tudo pra esquecer o teu perfume, que penetra em minhas narinas, perfume que lembra jasmim, junto com vento da estrada, misturado ao cheiro das árvores.
Fiz de tudo... e nada, amado, de te esquecer! Sempre presente, marcado, tatuado, entranhado em mim.
Roda que roda, estrada sem fim... Longa, desconhecida...
Quem me dera encontrar-te no final da jornada.
Esperança, talvez, de encontrar-te fora dela... Um dia... no alto... além...
BH - 19.05.03