QUE VONTADE DE FUMAR

Ah que vontade de fumar!

Esgueirei-me de casa como quem não quer nada e caminhei até a beira da praia.

Ali poderia pitar o meu cigarro de palha, feito à moda mineira ou goiana, com a palha de milho bem espichadinha a canivete, e o fumo de rolo picado e depois esfregado na palma da mão – do jeito que gosto, para tragar numa boa, prazerosamente, como os meninos do surf gostam de pitar o seu baseado e nossos antepassados bebiam (não existia a palavra fumar) a fumaça dos chamados cigarros índios.

Não é de hoje que o homem fuma ou bebe: pelo que sei, sempre foi assim.

O negócio é que hoje em dia a conotação é outra; você não fuma um cigarro para fruí-lo com gosto e alma, mas consome um ou dois maços por dia e nem sente mais o gosto de nada. A ansiedade leva a isto.

Lembro - me que, já aos quinze anos, eu pitava o meu pito bebericando cachaça na venda do Grego, perto de Vassouras, enquanto o saudoso Eugênio Capucci puxava o seu 120 baixos, cantando músicas gaúchas do velho hoje esquecido Pedro Raimundo: “Namorei lá na Cidade e me casei na serra, com minha Mariana moça lá de fora, um dia estranhei os carinhos dela e disse: adeus Mariana, que eu já vou me embora”....

Eram tempos inocentes, comparados aos de hoje – havia crimes, sim, mas noventa por cento eram passionais, cinco por cento por brigas de terras e rixas pessoais, o resto, os chamados hediondos, praticamente inexistiam e quando aconteciam era um Deus nos acuda para o povo não fazer justiça com as próprias mãos.

Não se usava tóxicos - os problemas se resolviam com a amarelinha mesmo: “bebo da branquinha, bebo da amarela, bebo na cuia, bebo na tigela, bebo com cravo, bebo com canela, bebo qualquer uma que passe na guela”... já cantava a Inesita Barrozo.

O vício do álcool realmente devastava, mas era circunscrito, de certo modo aos bebuns , nada de perecido com o crack, que devasta as nossas crianças que morrem no máximo um ano depois que se viciam.

Esta frieza e apatia que vemos hoje era impensável naquele tempo. Todos os moradores de uma rua se conheciam.

As pessoas fofocavam muito sobre a vida alheia, realmente, mas a solidariedade existia, mexeu com um, mexeu com todos.

Se fumei dos quinze aos setenta, e nunca tive nada, é porque raramente fumava mais de dez cigarros por dia; e sempre bebi; algumas vezes tomei porres homéricos, mas nunca o fiz de modo sistemático. E até hoje, me limito, mas curto muito os meus pequenos vícios. Não tenho a menor intenção de parar, nesta altura da vida. Meu segredo é que, na hora certa e na conta certa, num certo momento, qualquer prazer deve ser permitido, exatamente para que possa ser completo, sem restrição alguma. É como o momento do amor: tudo que possa valorizá-lo será bem vindo.

O gosto pela vida envolve o prazer.

Num mundo que pressiona tanto os indivíduos, há que ter uma pequena válvula de escape. O problema é conseguir seguir o caminho do meio, indicado pelo Buda.

De um modo geral, quando visito a minha irmã, fumamos os dois um cigarrinho. Trata-se de um ritual, e no meio daquela fumaça, quantas lembranças, quantas saudades!

Tudo o que é demais enjoa.

Esta postura intransigente contra os fumantes tem algo de farisaico. Me irrito com este policiamento todo, esta propaganda massiva, esta postura intransigente, como se fumar fosse um crime.

O fumo fez enormes estragos, realmente; muita gente teve a vida encurtada por causa dele. Mas se não fosse por ele, seria por outra coisa. A morte ronda e vem na hora que tem que vir. Se ela não te pegar por causa de um câncer no pulmão, te pegará por um câncer na próstata. O problema é a falta de equilíbrio.

Nunca fiz dieta para nada e jamais farei. Mas como moderadamente. Faço tudo o que me dá na telha, mas moderadamente. Tenho um diabetes incipiente, digamos assim. Cortei o açúcar, os doces e ultimamente, muito a contragosto, as bebidas destiladas. Elas passaram a alterar o meu comportamento. Ficava agressivo.

“In vino veritas”.Não posso cortar a veritas. Mas o vinho( aqui dito simbolicamente, porque o vinho não é destilado), posso.

No filme o Cangaceiro, de Lima Barreto , lá pelas tantas, um cangaceiro diz para uma mulher meio pegajosa que agarrava as suas pernas quando ele , montado, partia para seguir os amigos do bando para as guerras que eram a verdadeira razão de seu viver : “Se doce de coco quando é doce demais enjoa, quanto mais ocê!”. Esporeou o cavalo bragado, deixou a mulher desesperada e aos prantos e juntou-se à fila dos sertanejos que marchavam numa marcha batida ao som do canto da mulher rendeira.

Sou do tempo em que um homem era considerado um desclassificado se não desse o lugar para uma mulher na condução. As pessoas o olhavam feio, se bobeasse seria chamado de moleque por uma senhora indignada. E se desvirginasse uma virgem menor de idade, ou ia para a cadeia ou casava com ela.

Lembro-me que um ladrão foi roubar a casa de minha avó e ela o pegou em flagrante subindo por uma escada que estava sendo utilizada na pintura da casa: “Moleque o que é isso? Vem cá, Menino, vai roubar o quê, tá com fome rapaz? Não sabe pedir?” E o ladrão, o Menino, que era um cabra de 1.80m de altura, grandão, foi descendo a escada muito sem jeito. “Vem cá, pede benção”... “Benção, Madame”... “vem cá, vou te arranjar o que comer, Ó Maria, arranja um prato de comida aí para o rapaz aqui”... “Tô com vergonha”... “Fica não, Menino, vá comer , vá .. vergonha é roubar, pedir não é vergonha, vê se aprende” ..”Sim Senhora, Deus que a abençoe”...

Isto acabou. Hoje o menino botava o 38 na cara da velha e diria: “abre o cofre, sua velha, abre logo, senão morre!”

Lá na Fazenda da Represa vivia um negro velho: era meu xará. Quando se dirigia a mim dizia: “Nhosinho”, quando se dirigia à minha mulher, “Nhosinha”...resquícios da escravidão. Eu dizia para o velho: “Me chame de Xará” . Mas qual... daqui a pouco era de novo Nhosinho, e não tinha jeito.

Quando morreu, não tinha um parente vivo, e para dizer a verdade morava na fazenda há tanto tempo que nem sei qual era a sua origem. Quando comprei a propriedade já era velhinho. Cultivava um pedaço de terra e queria dividir tudo a meias. Eu não aceitava, ele não gostava, porque não queria esmolas e tinha o seu orgulho, e então encontrei um jeito de devolver o recebido: abri um crédito em seu nome junto à venda onde ele fazia as suas compras e ordenei que lhe fosse creditada qualquer mercadoria que precisasse e quando fosse pagar lhe cobrassem a metade do valor, a outra metade eu cobriria. Como ele não tinha lá uma idéia muita clara do valor do dinheiro numa economia que já era inflacionária, consegui fazer passar gato por lebre.

Às vezes eu o visitava e lhe pedia para me preparar um cigarro de palha. Ele tinha uma variedade de fumo que ele mesmo plantava e colhia que era maravilhosa. Conversávamos horas bebericando uma pinga e fumando fumo de rolo. Aprendi com ele coisas que não aprendi na escola, mas que tiveram um valor incomensurável. O Brasil que conhecera era outro. Entre as coisas que apliquei ao longo da vida estava o “Quando matar a cobra, mostre o pau”.

Estas lembranças simples me ocorreram assim ao léu enquanto olhava para as ondas batendo na praia e consumia solitário o meu cigarro de palha. Não os fumo sempre, só quando mais nostálgico, como agora. O cheiro é forte, mesmo os de casa reclamam. A vantagem é que você fuma pouco e que não contém produtos químicos. Consumo dos comuns também, mas agora só uma vez ou outra em ocasiões especiais.

E vou levando, porque se vivi até agora assim, e me sinto bem, não vejo razão para mudar. Os doutores que me perdoem, mas comigo eles não têm muita autoridade não: afinal são os membros da única profissão

que cobra antecipado e não garante resultado algum. Ah, me corrijo: as cartomantes também...

Joao Milva
Enviado por Joao Milva em 07/12/2009
Reeditado em 17/12/2009
Código do texto: T1965681