Um Homem no canto do ringue

Durante uma viagem que fiz a Suzano (Grande São Paulo) sentei-me ao lado de um personagem peculiar, cujo odor normalmente reprimiria que eu me aproximasse dele, porém, o sorriso convidando-me para ocupar o lugar ao seu lado desfez qualquer tentativa de abortar a idéia de ali sentar-me. Sentei-me com a firme resolução de fazer-me de morto, evitando uma maior aproximação com o aparentemente incômodo personagem, atitude que não foi muito eficaz, dada a pronta receptividade com que o companheiro de viagem me acolheu. Sua imagem de sofrimento, estampada no rosto perpassado de marcas que coroava um corpo magro, retravam em minha mente um daqueles profetas bíblicos, invectivando os déspotas da época.

Depois de alguns minutos de papo, o meu companheiro já me relatava que era um morador de rua, integrante do movimento dos Sem-Terras. De recheio, brindou-me com a informação de que havia sofrido violência sexual durante os períodos intermitentes em que dormia ao relento, agressão que lhe havia deixado seqüelas irreparáveis (emocionais e psíquicas) que lhe acompanhariam para o resto de sua vida. Ouvi pacientemente o relato de meu companheiro eventual e pedi-lhe que me fizesse um relato de sua atribulada vida. Márcio (este é o nome de meu parceiro acidental) relatou-me que já havia liderado vários acampamentos em fazendas invadidas, peitado juízes com mandados de desapropriação, e arrostado perigos vários em suas andanças pelo Brasil a serviço dos Sem Terras (MST), e como prêmio por seus serviços havia recebido um lote de terras no interior de São Paulo, local para onde estava se dirigindo. Fazendo uma cara condizente com a situação relatada, ele comunicou-me que não comia desde o dia anterior, e que não possuía recursos para chegar até a sede do movimento, localizada no bairro da Barra Funda, na capital de São Paulo. De forma constante, ele sempre retornava ao tema da agressão sofrida, até que eu lhe observei que quem havia sofrido a agressão sexual havia sido o seu corpo, tendo a sua mente nada sofrido. Mas, do jeito que ele colocava os fatos, parecia que a agressão tinha sido incutida em seu cérebro a ferro e fogo, marcando-o de forma indelével, como um estigma.

Quando a viagem chegou ao fim, convidei-o para tomar o trem metropolitano junto comigo, pois isso viabilizaria sua chegada até a central do movimento dos Sem Terras, onde ele seria devidamente amparado. Márcio ainda contou-me que se tornou um morador de rua após o final de um casamento de 21 anos, com uma mulher alcoólatra e dominadora, tendo ele deixado para os filhos uma casa e reserva bancária em uma caderneta de poupança, para que enfrentassem as despesas iniciais, deixando a documentação da casa como usufruto, impedindo que a mesma fosse vendida, preservando o patrimônio familiar.

Uma história interessante de um homem que foi jogado ao canto do ringue por circunstâncias que não soube, ou não quis, enfrentar. E, pelo não enfrentamento de suas questões pessoais, vem pagando um alto tributo: o abalo de sua própria sanidade mental.

Coincidentemente, este encontro com o Márcio aconteceu logo após a minha leitura do livro “O Eu mínimo” de Christopher Larsch, aonde se relata como se sobreviver em tempos de crise. No livro, chamou-me a atenção o relato de como um prisioneiro de guerra sobreviveu a diversas atrocidades, refugiando-se nos recônditos de sua mente. Este prisioneiro citado no livro é o psicólogo austríaco Bruno Bettelheim, conhecido mundialmente.

Vale do Paraíba, Dezembro de 2006

João Bosco

Aprendiz de Poeta
Enviado por Aprendiz de Poeta em 06/12/2009
Reeditado em 06/12/2009
Código do texto: T1963587
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