Carta para uma amiga

Carta para uma amiga

Querida, o momento da carta número 3 se faz oportuno. Sinto-a triste. Pelo fato de pertencermos à mesma Confraria, a dos Buscadores, e em virtude disso termos nossas antenas aptas a ler nos menores indícios o que se passa nos corações dos confrades, eu não poderia me furtar a outra atitude senão escrever essa carta.

Sim, estás triste, há lugares vagos na mesa, essa época vem carimbada com um determinado magnetismo que, por mais que tentemos, faz-se impossível dar-lhe as costas. É o que nos torna Buscadores. Perceber certa eletricidade na atmosfera, qualificá-la e seguir em frente. Contudo, para nós, seguir em frente não é uma tarefa tão corriqueira como é para os demais. O sentimento arrebatador que palpita, aliado à visão clara de uma certa qualidade de paz interior jamais conquistada pela quantia no banco, mas pela ação diária de dirigir nossas antenas, nos torna criaturas portadoras de curioso fardo.

Algumas coisas nos ferem profundamente.

Veja você, domingo passado acordei com dor nas costas, passei a semana inteira me besuntando de emplastros, ontem achei que estava curado e hoje, acredite, hoje meus olhos ficaram marejados, marejo esse não decorrente de emoção ou saudade mas de dor mesmo, no mesmo local, a mesma dor.

Tenho de dizer com todas as minhas forças que “Eu Sou o senhor deste corpo” e ainda por cima colocar mais emplastros e por fim tomar o medicamento, mesmo sabendo que quem confere o poder de cura a esse medicamento é a minha consciência, mais nada.

Já sabemos disso, pois Buscadores Somos.

Ah, e o tal concurso, já lhe falei do tal concurso, aquele em que me inscrevi? Saiu o resultado e meu nome não aparece nem para suplente de gari. Evidente que eu tinha as minhas esperanças, pois esperanças todos temos, e é necessário achar um local para depositá-las. Assim, sinto informar que não foi desta vez. Ai, ai...

A cada ano, nessa época, a mesa se torna maior, com mais lugares vagos, e as lembranças já nem são lembranças, são locais, e isso nos entristece. Sim, são locais, e corremos para lá para encontrar um pouco do que fomos e para ver aqueles que conosco, naquele instante, também foram, ou, se preferir, fizeram parte de nós.

Ai, ai...minhas origens lusitanas me levam a exprimir assim a melancolia e, cá entre nós, se eu não te escrevesse, escreveria a quem? Ao bispo?

Esse engodo maquiavélico denominado Tele Jornal, quinta feira agora me pregou uma peça nos sentidos que foram necessárias 48 horas para me livrar daquilo a que denominam (erroneamente) de informação. Uma lástima. Já te contei isso? Um sujeito, alcunhado no bairro de Vovô do Motel, foi pego na companhia de três meninas de 10, 11 e 12 anos. Sabe o que ele disse em sua defesa? Que foi assediado pelas meninas..., depois sorriu para a câmera e se vangloriou de ser homem. Cada surpresa nos prega a telinha. Sutilmente, diante da passividade geral, a sub mensagem em meio ao mar de lama que a Informação se sustenta e por conseguinte sustenta nossos sentidos sobrecarregados, é a de que um Vovô desses a mais ou a menos não fará a menor diferença.

Bem, acho que já falei demais. Se você me perguntar qual a nossa responsabilidade, eu te direi que esta se resume em administrar nossas emoções e pensamentos, da melhor maneira que pudermos, porque ninguém, em tempo algum, é responsável por elas. Mas, atente a esse detalhe, somos amigos, podemos descobrir no desenrolar da amizade que não estamos sozinhos por mais que, cá entre nós, seja justamente isso o que parece suceder.

Deixo aqui um abraço carregado de energia ( e cheirando a emplastros), para vivificá-la no caminho desta amiga maior chamada Vida, alguém que, quanto mais nós damos, jamais é suficiente, quanto mais gostamos dessa generosidade, mais em dívida ficamos, face o indescritível prazer que ela nos dá.

O prazer de estarmos vivos

Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 06/12/2009
Reeditado em 29/01/2013
Código do texto: T1963549
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