Muluh termina (?) o cacho
Era cedo. Mesmo com o horário de verão, estava tudo escuro. Muluh liga:
“Nooossaaa! Ilram, do céu, nem vais acreditar! Lembras que o policial estava na casa de Dirce? Aí, fez algumas perguntas e questionou-a se ERA esposa de Gerson Remi.
Bem, ela estava muito nervosa. Tremia e lágrimas rolavam:’Era? Não é mais?’
O policial nem respondeu. Desnecessário, o ‘era’ contava tudo. Falou, calmamente: ’Preciso que a senhora, faça o favor de me acompanhar ao IML. Recebemos comunicação de que acaba de chegar lá um indivíduo, portando documento de Gerson Remi Madeira. Pelo endereço, colado na carteira, chegamos aqui. Compreendo a situação. É difícil, mas necessitamos de sua colaboração’.
Governanta, copeira, arrumadeira e cozinheira estavam na sala, e tentavam palavras, água com açúcar e um rosário para facilitar, pelo menos um pouco, o constrangimento da dona da mansão.
Dirce acompanhou o policial ao IML. Gerson ainda não fora para a gaveta. Fazia apenas uma hora que o haviam trazido. Vestia sunga vermelha e, a seu lado, na maca, estavam seus sapatos, meias e gravata suja.
O oficial do plantão indagou se o indivíduo era Gerson Remi Madeira, conforme documentos em sua carteira, sem dinheiro, mas com a foto de uma mulher.
‘Reconhece a mulher da foto?’ inquiriu o oficial de plantão. Dirce embranqueceu: era a mulher da foto daquela revista, tipo um Xerox amassado de Amy Winehouse.
‘Não, nunca a vi. Por favor, como essa carteira veio parar aqui?’ quis saber minha tia.
‘Recebemos um chamado de um motel, nos arredores de Tatuapé, a respeito de um homem que sofrera uma crise cardíaca na cama de um dos quartos. A carteira estava sobre a bancada do banheiro. Além da carteira, com dados e endereço do proprietário , havia uma CNH em nome de Gerson Remi Madeira, porém, nada mais, além de sapatos, meias e gravata. Quando chegamos, estava caído ao lado da cama, já desfigurado por total inchaço e pela cor roxa que cobria sua pele. Nada que pudéssemos fazer, uma vez que, segundo peritos, morrera entre sexta e sábado. Conforme testemunhas, a foto corresponde a descrições da mulher que o acompanhava.’
‘Não pode ser Gerson! Era muito magro. Posso quase jurar que é um coitado qualquer. Meu marido viajou para o Rio e teria uma semana inteira de reuniões pesadas, com grandes executivos. Como poderia estar em São Paulo?'
‘Minha senhora, o dono do motel afirmou que alguém identificou-se como Gerson, e estava com a mulher da foto. Aí, pagou adiantado por uma semana de diárias. E não deixaram o quarto desde que entraram, sexta à noite. Lá, o pessoal da perícia encontrou várias garrafas de Dimple, pacotes vazios de salgadinhos, embalagens vazias de Viagra, e muitos outros detalhes sórdidos , dos quais preferimos poupá-la.’
‘Se possível, quero ir para casa. Esse infeliz, decididamente, não é meu marido. A carteira é dele, bem como sapatos e a CNH. Sei que vocês precisarão do material para a investigação. Não desejo nada do que está aqui.’
Dirce sabia que errara, no entanto, GR precisava pagar por enganá-la. Por quanto tempo vinha mentindo?
Entrou em casa. Ligou para sua amiga mais chegada e pediu –lhe que apanhasse as filhas, no maternal, e que as levasse para dormir na casa dela, uma vez que a amiga tinha filhas na mesma escola e, então, poderiam brincar , jantar e dormir lá. Sua amiga nem fez perguntas. Costumavam fazer isso : às vezes ela buscava a criançada toda e levava-as para sua casa, em outras ocasiões, sua amiga fazia isso.
Abriu a porta do closet, com as iniciais GR, olhou tudo. Sua raiva ultrapassava estágios de rasgar, queimar ou distribuir para entidades de caridade os pertences de Gerson Remi. Apenas trancou a porta , jogou a chave no vaso sanitário e acionou a descarga.
Encheu a jacuzzi, pingou muitas gotas de essências perfumadas e calmativas, colocou , junto à banheira, o IPod, com música dos Beatles, e ficou ali até que sua cabeça estivesse mais limpa e leve do peso da mágoa desses dez anos de enganação.
Preparou-se para um dia especial : almoço no clube; cinema à tarde; jantar com duas amigas no Fasano. E, claro, uma esticadela na noite paulistana. Porém, antes de entrar no carro para iniciar sua maratona de libertação, ligou para o IML:
‘ Desculpas, aqui é Dirce Madeira. Estive aí hoje cedo. O meu Gerson acabou de ligar e contou que roubaram sua carteira com documentos, cartões e dinheiro. Sei lá quem é o coitado que está na gaveta, sim, porque a essas horas deve estar lá. Desculpas, me assustei demais e o impacto não me deixava nem ver direito nem pensar e, talvez, tenha sido rude com vocês. Peço que me desculpem. Agora, estou feliz esperando pelo meu amado Gerson. ’
Dirce sabia que estava tudo incorreto, mas deixar o pilantra congelando na gaveta do IML lhe dava uma alegria imensa. A sósia torta de Amy que se virasse e desse um jeito, já que estava sendo procurada. O policial falara que tinham algumas pistas sobre a mulher e que, em vista disso, não haveria divulgação para a imprensa até que fosse encontrada.
Que buscassem a mulher! Seria ótimo . Precisava de mais um tempo. Evitaria esse negócio de IML, gaveta, investigação até chegar o momento certo. Se chegasse... Afinal, como no filme “O Vento levou”, ‘ amanhã é outro dia’.
“Fiquei de boca escancarada, Ilram. A Dircinha, toda patricinha e bancando a certinha, mentir para a policia! Minha mãe ligou ontem, tarde da noite, para me informar o que sua irmã lhe narrara, calmamente, mas implorando por segredo. Apesar de jurar para Dirce que sua boca era um túmulo, passou para mim, tim-tim por tim-tim, a trança toda.”
“E como ficou a tragédia?” perguntei.
“Por enquanto está tudo na mesma. O Gerson continua na gaveta porque a investigação , de verdade, está parada: não encontram a sósia da Amy! Quando penso no falecido ‘bem’ com a sunguinha vermelha, guardadinho no freezer, chego a pensar que Dirce está certa. Claro que é uma vingança terrível, mas o que ele fez também foi pavoroso!”
“Mas ,e daí? O que acontecerá com tua tia?”
“Agora está tudo em banho-maria, na maior tranquilidade!!! Dirce já assistiu quatro vezes o filme 2012! Creio que para se conformar: o que é sua tragediazinha doméstica perto da hecatombe universal mostrada no filme?
Quando traçarem os rumos da mulher da foto, a história vai esquentar! Podes confiar! Que babado, heim? Qualquer detalhe, sujo ou colorido, te conto!
Beijinhos e obrigada por me ouvir tão cedo! Tchau!”
Confesso que fiquei sem saber o que esperar dessa confusão. Dirce pode se complicar por omissão da verdade. No entanto, admiro seu sangue frio frente ao corpo, no IML. Como conseguiu afirmar que o cara, na maca e depois na gaveta, não era Gerson Remi. A inspiração dela, naquele momento desencadeador de sua vingança, me assombra. E, sem puxar brasas para o assado das mulheres, demonstra como somos criativas ...e cruéis(será? Gerson já morrera mesmo!) quando amarfanham nossos sentimentos. O mais incrível é que muitos ainda não sabem disso!
Como disse Muluh, qualquer outro nó, colorido ou sujo, a história ainda segue...
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