ESTIRANDO PNEU COM MARTELO
ESTIRANDO PNEU COM MARTELO
Era só um pré-adolescente, mas gostava de estar junto às pessoas que construíam alguma coisa, que usavam as suas próprias mãos para produzir alguma utilidade. Gostava de ir, de vez em quando, à sapataria que ficava defronte à minha casa. Os operários já me conheciam muito bem e sabiam que eu era uma pessoinha solícita, que gostava de ajudar. Certa feita, quando lá cheguei (parecia que já estavam me esperando), já encontrei um balde com água, e dentro dele algumas tiras de pneu de caminhão. Tão logo cheguei, fui desafiado a ajudar na confecção de algumas alpercatas (era como chamávamos as sandálias masculinas), cujo solado, em vez de couro, era feito com borracha de pneu de caminhão. O meu trabalho consistia em estirar a borracha, de para que ela ficasse mais macia ou maleável. Para tanto, eu precisaria utilizar um martelo. Ensinaram-me que eu deveria molhar sempre a borracha para facilitar o trabalho de amaciamento. Na minha inocência, ficava, horas a fio, molhando e batendo com o martelo na borracha, na esperança que ela cedesse. E, assim, os dias iam passando e eu sempre voltava à sapataria para auxiliar os sapateiros, fazendo o meu trabalho. Sempre que saía, minha mãe advertia-me de que estava fazendo papel de trouxa, sem falar que cada passagem minha pela sapataria era uma camisa que sujava com água preta. Até que um dia, já cansado de tanta advertência de minha mãe, percebi que os operários começavam a rir quando eu chegava e, de vez em quando, alguns curiosos vinham apreciar o meu trabalho. Aproveitando um momento sozinho, retirei as tiras do balde e, analisando-as detidamente, percebi que não haviam cedido um milímetro sequer. Olhei para os lados e para minha camisa, vendo que estava salpicada de água suja. Com tristeza, constatei que durante todo aquele tempo eu havia feito papel de bobo. Senti-me profundamente atingido na minha boa-fé. Senti-me usado por pessoas sem coração. O tempo passou, passei pela adolescência, chegando à fase adulta ainda crendo que poderia estirar pneu usando um martelo. Na verdade, eu havia esquecido completamente aquele triste episódio. E, assim, fui encontrando pelo caminho outros sapateiros que, igualmente, me fizeram de bobo induzindo-me a continuar batendo pneu com martelo, pois me garantiram que fazendo isso ele (pneu) ficaria mais maleável, mais macio, mais fácil de trabalhar. Por longos anos, persisti nessa faina, achando que poderia estirar pneu com martelo. Hoje, porém, quando me encontro no limiar da velhice e percebo que à minha volta pessoas com os mesmos propósitos daqueles sapateiros de outrora, cuja lembrança volta a doer como se fosse hoje, eu me dou conta que continuo o mesmo ingênuo de sempre. Continuo ingenuamente malhando pneu, na esperança de que possa ceder e ficar, pelo menos, um pouco mais flexível. Mais uma vez – espero que definitivamente - constato que é inútil bater pneu com martelo, pois ela jamais se tornará flexível. Por mais que eu bata, só conseguirei desperdiçar minhas energias e me sujar. E o pior de tudo, é saber-me alvo de chacota, de galhofa, dos que se aproveitaram da minha boa-fé. Assim como pneu não estira com martelo, os maus caracteres não mudam nem com pancadas.
Luis Gentil – Dez/2009