Mãos videntes

Escrevo minha crônica diária como quem sai para dar uma volta e chega até passar a noite fora. Entro em lugares indefinidos carregando nos bolsos ambições indefiníveis. Cada qual traduz do fato a instantaneidade, e a liberdade da prosa serve de amigo para a estirpe de solitários.

Agora, porém, enquanto postava, levantei-me para ouvir a voz interior; e ela resultou em samba antigo. Procuro não pensar, partir do princípio de que foram varridas as sombras do dia para baixo do tapete da noite. Ouço as conversas de rua, e o céu ficando escuro, dá sinais de sossego.

Estou a ver o raio de luz no canto da sala.

Como o fotógrafo Clênio Lentino, poremos luz no canto da sala para estudar e dizer: "estava estudando uma luz no canto da sala". A luz no meio do nada dilucida o dilema criativo.

O tempo do texto imprime sérias condições à ficção. Como se a imaginação fosse o fracasso do escritor. Brincadeira de criança. Lamentemos com estardalhaço este fracasso dos sonhos, esta falta de posse do lirismo. Restará só certa anarquia arrastada pela areia no fundo do chão exato. Exato e chato.

É o cronista quem luta dentro da imprensa fatalista e do jornalismo narrativo pela posse do retorno da alma a versão intrincada, lógica e fria do fato. O fato em si, sem reverso oco, virtual e vago.

A crônica não é o autor. É o resultado das mãos videntes de afeto.

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