BUS STOP
lisieux
E então eu te vi...
Vi-te, parado ali em frente, recostado a um poste,
no ponto de ônibus. E eu te reconheci, não com os
olhos carnais, mas com os olhos da memória porque
tu nem mesmo te parecias com o homem a quem me
entreguei em uma tarde de verão, quente, muito quente,
há tantos anos.
Reconheci-te por detrás das rugas, por detrás dos óculos,
por detrás das cãs.
Assim que coloquei em ti os olhos, mesmo de longe,
te reconheci.
E nem por um segundo, duvidei que fosses tu.
Nada em ti lembrava o jovem com o qual
eu havia me relacionado. A pele sem viço, os olhos
castanhos cansados, a boca arriada, os cabelos claros
já quase completamente brancos.
Parecias menor também... encolhido, ombros curvados,
como que ao peso dos anos, das lembranças...
de sonhos não concretizados. Parada, do outro lado da
calçada, apenas te olhava e pensava se valeria a pena
atravessar a rua, aproximar-me de ti, dizer “alô”.
Será... será que tu te lembravas?
Será que tu me reconhecerias caso eu surgisse,
repentinamente, na tua frente?
Tu parecias cansado. Assentei-me no banco da parada
de ônibus, no sentido oposto, e fiquei a observar-te.
E as lembranças povoaram-me a mente, levaram-me lá para
o nosso passado, para o tempo em que eu julgava que era
possível a gente ser feliz. Lembrei-me da tua voz. E tive vontade
de chamar-te a fim de que me respondesses no tom grave e
suave que me fazia arrepiar: “fala, guriazinha”...
Vontade não só de chamar-te, mas de gritar o teu nome a fim
de que ele ecoasse na noite fria, vencendo a distância que nos
separava, quebrando a barreira do tempo, trazendo de volta
o passado e a vida.
Lembrei-me dos teus passos... na outra calçada, andavas
vagarosamente de um lado para outro, talvez para espantar
o frio. Mãos nos bolsos do sobretudo, passos cadenciados.
E me lembrei de como costumavas pisar firme, andar com
pressa, puxando-me pelo braço, como se tivesses urgência
de qualquer coisa, urgência de tudo.
Lembrei-me dos teus gestos largos, da tua “AGORIDADE”,
síndrome de querer resolver quaisquer problemas
do cotidiano imediatamente. Lembrei-me também da tua
quietude, depois do amor. Remanso e sonho depois da
correria diária.
Olhos de pasto, passeando pelo meu corpo.
Riso suave e doce, marcando um tempo de descanso,
parada para repor as forças no meu leito de poesia.
Vale a pena, meu Deus, atravessar a rua?
Tu ali, a poucos passos: mesmo homem, mas tão
diferente!
Tantas e tantas viagens, tantos descaminhos, tantas
encruzilhadas...
Enquanto te olhava, olhos rasos d’água, um ônibus se
aproxima do teu ponto. Tu fazes sinal com a mão e eu,
reteso o corpo, salto como mola do banco, levanto os
braços, faço menção de chamar-te.
Num átimo de segundo, lembro-me dos motivos que
distanciaram os nossos destinos: lembro-me da minha
casa, meus 25 anos de casamento, meus filhos...
Será que tu também foste feliz?
Deixo os braços descaírem ao longo do corpo e fico
olhando tu entrares no ônibus.
Com ele já em movimento, olhas para mim...
Está escuro, mas posso sentir a fagulha que sai dos teus
olhos.
O que eu vi ali? Tristeza, remorso, resignação?
Bem... não mais importa.
Estoicamente enxugo as lágrimas do rosto, levanto a gola do
casaco e, finalmente, atravesso a rua e sigo o meu caminho.
BH – 06.09.03