Com G se escreve guarda-chuva e gentileza*(EC)
Heloísa bem que tentou assoprar para longe de nós as pesadas nuvens negras, mas foi em vão.A chuva já estava com seu propósito definido de cair e o hálito de uma criança de três anos é muito doce para mudar o destino.Então, minha filha olhou para mim, com seus olhos graúdos e escuros e disse:
-Precisamos de um guarda-chuva, mamãe!
Eu não havia trazido um.Nós tínhamos ido ao parque, a pé, tão pertinho de casa, vai dar tempo, aperta o passo...Não deu.Estávamos agora as duas debaixo de uma marquise esperando que a chuva abrandasse, fazer o quê?!
As pessoas passavam correndo, (em São Paulo, toda gente vive assim, com pressa, ainda mais com motivo) espirrando água, levando os objetos das mãos à cabeça, para se protegerem do aguaceiro que espalhava seu cheiro ácido no ar; outras desfilavam seguras, alheias, de posse de seus guarda-chuvas estampados (ou não) pelas calçadas molhadas.E nós, ali, encolhidas, esperando o tempo que o tempo melhorasse.
Se eu estivesse sozinha, eu não me importaria em me molhar.Ia até gostar.Tomar um banho de chuva revigora-me.Ponho no rosto até aquele sorriso mais largo que estava guardado há dias.Mas a Heloísa estava comigo.Com ela, eu fico careta, poxa!Vai que pega um resfriado, um carro distraído encharca-nos com a água parada do meio-fio: água suja, de bueiro, vem folha junto, bituca de cigarro...
-Mamãe, “vamimbora”, logo-logo, por favor!
Adoro quando Heloísa fala “logo-logo!” Esta construção repetidinha me faz sorrir.Mas naquele momento, não!Eu estava chateada comigo, por ter esquecido o guarda-chuva.Queria que a chuva parasse logo-logo.Também queria ir para casa.
Até que, do nada, uma senhorinha apareceu.Era baixa, de cabelos crespos, grisalhos, presos num coque todo certinho.Poderia ser a minha avó: mulher negra, de sorriso fácil:
-Toma, fica com o ele!
-Não posso aceitar, a senhora, vai se molhar!
-Minha casa é logo ali, não se preocupe, pega!
Ela pôs o guarda-chuva em minhas mãos com tanta certeza, que eu só pude dizer:"Deus lhe abençoe".
Foi aí que eu a vi plena: ela entregou-se tranquilamente à chuva, de alma lavada.Fiquei desejando que a chuva não lhe fizesse mal, que as águas lhe acarinhassem.Ela merecia isto.
A senhorinha com seu gesto singular no meio daquela avenida deu-me mais que a sua armação de varetas móveis: deu-me sua bênção.
Para Francis Bacon, se um homem é gentil com desconhecidos, isto mostra que ele é um cidadão do mundo, e que seu coração não é uma ilha que foi arrancada de outras terras, mas um continente que se une a eles.
E morando num mundinho em que a gentileza é pouquíssimo praticada, eu confesso, que por esta, eu não esperava.
* Cena verídica
(Maria Fernandes Shu – 27 de novembro de 2009)
Este texto faz parte do Exercício Criativo - Por Esta Eu Não Esperava.
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